Missaggia sobre Husserl - Real, Reell, Irreell, ideal

Abaixo, apresentamos excerto do bom texto de Missaggia sobre os termos de Husserl do título (p. 74-78). Termos de tão difícil compreensão, e cujo debate é escandalosamente negligenciado nas traduções em língua portuguesa. Se Husserl é um autor difícil, não há qualquer justificativa para que o leitor em língua portuguesa tenha uma camada de dificuldade a mais - a linguística - para entender termos-chave de sua obra. Enquanto traduções em outras línguas não raramente carregam os termos em alemão entre chaves ou inúmeras notas explicativas, em português pode-se passar páginas e páginas com ambiguidades não resolvidas. Mas, se as traduções servem para divulgação geral, e não para a recepção dos especialistas apenas, qual é a função de traduzir um texto cujo uso, sem resolver ambiguidades e problemas de tradução, permanece restrito a especialistas?

A discussão dos termos, por Missaggia, auxilia em questões que, como ela mesma diz, são fundamentais para compreender a Fenomenologia. O texto segue a discussão e ilumina outros termos. Nossa citação se mantém nos termos do título do post. Segue abaixo.



A apresentação das características fundamentais de noese e noema remete à diferença entre os componentes próprios ou inerentes ao vivido intencional (processo mental) e seus correlatos intencionais. Os primeiros dizem respeito àquilo que na linguagem técnica da fenomenologia é chamado de componente real (reell), isto é, tudo que é imanente ao próprio processo ou ato, enquanto que os últimos são componentes ideais ou irreais (irreell) – aquilo que de algum modo transcende o próprio ato, na medida em que faz referência a algo fora dele. Assim, noese é um componente real do vivido intencional, pois é algo inerente ao próprio ato (o ato de julgar, por exemplo), enquanto que o noema é componente ideal, na medida em que é algo que transcende o ato (o julgado, por exemplo, como aquilo ao qual o ato de julgar se remete e que, nesse sentido, está além do ato em si).

É importante observar que esse é um ponto crucial para a compreensão do conceito de intencionalidade desenvolvido por Husserl e que em função da sua terminologia peculiar e do estilo de escrita do filósofo, acabou gerando diversos malentendidos que culminaram na compreensão equivocada de noese e noema e, consequentemente, da teoria fenomenológica de modo geral. A primeira questão aqui, é evitar o erro de compreender os termos real (reell) e ideal ou irreal (irreell) fora do seu contexto especifico: são noções fenomenológicas que não devem ser confundidas com a maneira como essas mesmas palavras são usadas por outros filósofos. Essa dificuldade é ainda mais comum devido a algumas traduções que nem sempre explicitam qual o termo exato que está sendo usado, o que pode levar o leitor a confundir essas e outras noções, como real (real) e ideal (ideal).

[Ideal, possui três usos: “1. Ideal é aquilo que não é real (real), mas sim é experienciado em um ato categorial ou, para dizer o mesmo, na constituição de um objeto categorial (…). 2. Ideal é aquilo que não é real (real) mas é um objeto conhecido em um ato ideal, por exemplo, uma espécie ou uma essência conhecida através de um processo de abstração, ou uma essência exata apreendida na formalização, ou um indivíduo ideal conhecido através de um processo de ideação. 3. Ideal é o que não é real (reell), isto é, não um componenete inerente ao ato; assim, o conteúdo intencional de um ato é um componente 'ideal' do ato. Esse último uso funda-se sobretudo nos primeiros escritos de Husserl, onde, por exemplo, ele diz que o sentido de um ato expressivo é seu conteúdo 'ideal'” (DRUMMOND, John J. Historical dictionary of Husserl's philosophy, p.99). Real, por sua vez, “é aquilo que é atual como uma entidade física ou um de seus componentes, ou como uma entidade psicológica (a 'alma') ou um de seus componentes ou experiências.” (Ibidem, 2008, p.176)]

Tal confusão, devido ao caráter de aparente familiaridade com essas palavras, está diretamente relacionada a problemas na interpretação do idealismo husserliano.

Outra questão fundamental é que reell abrange outros elementos além de noese. Uma vez que real é tudo aquilo que é inerente ao vivido intencional, serão reais não somente os atos noéticos, mas também tudo que for matéria, como os dados sensórios. Matéria (hyle) é outro termo técnico da fenomenologia husserliana e aparece em contraste com forma (morphé). Tais noções surgem no contexto da análise do fluxo de experiências do vivido intencional (Ideen I, §85), onde Husserl separa dois momentos, um dos quais será a parte propriamente intencional. O filósofo retoma os termos da doutrina aristotélica de forma e matéria e divide a experiência em dois momentos: a parte intencional é chamada de morphé (termo grego para forma) e a parte sensória de hyle (termo grego para matéria). A última diz respeito à sensação e a primeira à apreensão e conceptualização que é agregada a esta. Nesse sentido, o momento intencional é também a parte da experiência que trata do aspecto cognitivo, onde os dados sensoriais são interpretados de modo a construir uma experiência com sentido. Nas palavras de Husserl:

Dos primeiros [matéria] fazem parte certos vividos ‘sensórios’, unificados no gênero superior ‘conteúdos de sensação’, tais como dados de cor, de tato, de som, e semelhantes, que não mais confundiremos com momentos de aparição das coisas, como coloração, aspereza, etc., os quais antes se ‘exibem’ no vivido por meio daquelas. Assim são também as sensações de prazer, de dor, de cócegas etc. e também momentos sensórios da esfera dos ‘impulsos’. Encontramos tais dados concretos de vivido como componentes de vividos concretos mais abrangentes, que são intencionais no todo, e intencionais de modo a haver, sobre aqueles momentos sensórios, uma camada que por assim dizer os anima, lhes dá sentido (ou que implica essencialmente doação de sentido), uma camada por meio da qual o próprio vivido intencional concreto se realiza, a partir do sensório, que nada tem de intencionalidade em si.

Assim, a matéria a que se refere o filósofo possui um sentido mais amplo do que pode sugerir sua relação com dados sensórios: não se trata apenas de dados de cores, formas e texturas, etc, mas também sensações (como prazer e dor) e, em sentido geral, tudo aquilo que é dado passivamente no ato e que serve de substrato para a parte ativa e propriamente cognitiva do vivido intencional. Ainda que possa parecer estranho que matéria seja parte daquilo que é componente real e, portanto, inerente ao vivido intencional, isso se explica na medida em que se trata de dados apreendidos passivamente e numa multiplicidade de atos, mas no ponto de vista do sujeito transcendental, dentro do campo aberto pela redução.

Isso fica mais claro se pensarmos no procedimento de redução fenomenológica: ao efetuar a redução podemos observar que alguns elementos são próprios do vivido intencional (o modo como recebo os dados sensórios, o próprio ato noético de perceber, por exemplo), mas outros parecem dizer respeito a elementos externos ao vivido intencional: quando percebo um objeto como uma árvore, a percebo como algo vindo de fora, que transcende o vivido intencional. É claro que, conforme vimos no estudo da redução, estamos nos abstendo de julgar a respeito da existência do objeto ao qual nos dirigimos, mas isso não muda o fato de que o percebemos como se fosse algo exterior. Essa percepção do objeto como se fosse algo exterior, faz parte da experiência e deve, portanto, ser levada em consideração.

Podemos nos questionar por que os dados sensórios, como dados de cores, são vistos como elementos imanentes ao vivido intencional, afinal também eles são percebidos como algo que “vem de fora”. Porém, aqui há uma diferença importante entre a cor enquanto propriedade do objeto e as diversas experiências de cor percebidas – as mesmas folhas verdes da árvore, por exemplo, são percebidas como se tivessem tonalidades diferentes conforme a luz e o ângulo nos quais são vistas. Desse modo, a cor enquanto dado objetivo do objeto será elemento ideal (irreell) do vivido intencional, mas a cor enquanto algo percebido nos diversos atos será elemento real (reell).

Outro estranhamento – e é compreensível que hajam confusões quanto a esse ponto – é a própria linguagem empregada por Husserl: chamar de ideal aquilo que percebemos como exterior e transcendente ao vivido intencional parece um contrassenso, pois é justamente a isso que costumados chamar de “real”. Tal questão fica mais clara se pensarmos que esses são termos filosóficos cujo ponto de referência é o vivido intencional, então os dados em questão estão sendo avaliados como reais ou ideais em relação ao mental. Porém, quando muitos intérpretes falam em “objeto real” em contraste com “objeto mental”, isso evidentemente é uma maneira de falar onde “real” não é usado nesse sentido anterior e serve apenas para esclarecer a diferença entre o “objeto puro e simples” (o objeto efetivo, “real”, que está no “mundo”) e o “objeto enquanto percebido” (o objeto enquanto é apreendido pela mente).

O filósofo reconhece a dificuldade do que está propondo, especialmente pelo fato de ser uma abordagem nova para a questão. Até mesmo Brentano teria sido incapaz de lidar com essa diferença conceitual, uma vez que ele “não encontrou o conceito de momento da matéria [hyle], e isso porque não fez jus à separação de princípio entre 'fenômenos físicos' como momentos materiais (dados de sensação) e 'fenômenos psíquicos' como momentos objetivos (cor, forma da coisa, etc) (...)”. Ora, Husserl não está propondo uma separação de fato entre os dois aspectos dos fenômenos físicos que descreve: não é o caso que, por exemplo, a cor enquanto dado sensório seja algo ontologicamente distinta da cor física do objeto.

O que deve ser observado aqui é que na análise fenomenológica, devemos
diferenciar a cor enquanto experiência, enquanto dado sensório – em certo sentido  subjetiva, dependente de fatores diversos – e a cor enquanto propriedade do objeto ou,  dito de outro modo, enquanto aquilo que atribuímos ao objeto. O próprio modo como  experienciamos e interpretamos os dados sensórios exemplificam essa diferença: o fato  de que os mesmos objetos sejam vistos por nós em tonalidades de cores distintas pela  manhã e à noite não nos leva a pensar que mudem de cor ao longo do dia; sabemos que  o objeto permanece com a mesma cor, mas que esta é vista por nós em diferentes  tonalidades conforme a mudança na luz e outros fatores.

É importante destacar ainda que, de acordo com a mereologia husserliana (teoria  sobre a parte e o todo), os “momentos” são sempre partes dependentes de um todo do  qual fazem parte. No caso do vivido intencional, portanto, seus dois momentos (hylemorphé) dependem do todo da experiência. Isso significa que eu não poderia ter dados  sensórios (hyle), sem já estar interpretando-os pela parte intencional (morphé), do  mesmo modo que não poderia ter o momento intencional de conceptualização sem a  base sensória. Um exemplo disso aparece em qualquer ato perceptivo: se vejo uma  nuvem no céu, não vejo uma mancha branca sob um fundo azul (dados sensórios), mas  vejo imediatamente algo que chamo de nuvem e algo que chamo de céu, com suas cores  e em conexão com todo o contexto de meu conhecimento sobre tais objetos.

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- Wittgenstein

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