Otto Friedrich Bollnow: La Philosophie de la vie à l'epoque moderne

Le terme « philosophie de la vie » est déjà ancien en Allemagne, bien qu'il ait eu d'abord une
signification assez imprécise. L'homme du XVIIIe siècle parle déjà de sa philosophie de la vie
et il entend par là, en général, les directives qu'il s'est fixées au sujet de son comportement
dans la vie. Quoiqu'une certaine opposition à l'égard de la « philosophie scolaire », étrangère à
la vie, puisse être déjà rencontrée, le nom de « philosophie » n'est toutefois entendu ici que
symboliquement, pour désigner des formes de réflexion plus libres portant sur la vie et sur le
monde.

Par contre le concept de philosophie de la vie put seulement se développer, pour atteindre une
signification précise, au moment où le concept de vie lui-même fut accepté fermement dans
l'histoire de l'esprit. Cela se produisit (si l'on considère cette évolution, typique pour l'Al-
lemagne, sous l'angle de la pensée allemande) surtout vers la fin du XVIIIe siècle, avec la
génération du Sturm und Drang, chez le jeune Herder, Goethe et le jeune Jacobi. En face de la
vie, de l'époque précé- [page 263 / page 264] dente, solidifiée en des formes fixes en face des
conventions sociales et de l'érudition d'un savoir étranger à la vie, en face des artifices d'une
vie superficielle, on aspirait à revenir à une authenticité et à une nouvelle im-médiateté de la
vie. La critique de la civilisation est devenue, depuis lors, le soubassement durable de toute
philosophie de la vie et c'est dans cette mesure qu'on peut faire figurer l'œuvre de Rousseau au
nombre des conditions préliminaires les plus importantes de la philosophie de la vie, bien que
le mot « vie » n'ait pas encore chez Rousseau une signification maîtresse. Rappelons
seulement, en passant, les phrases bien connues par lesquelles débute son Emile: « Tout est
bien, sortant des mains de l'Auteur des choses; tout dégénère entre les mains de l'homme... il
ne veut rien tel que l'a fait la nature, pas même l'homme; il le faut dresser pour lui comme un
cheval de manège; il le faut contourner à sa mode, comme un arbre de son jardin». Ainsi on
aspirait à échapper à l'existence artificielle de la civilisation, pour revenir à une nature pure et
originelle, et c'est celle-ci qui caractérise ensuite la nouvelle génération du Sturm und Drang
en Allemagne, génération dont le concept fondamental était la vie.

http://www.otto-friedrich-bollnow.de/doc/PhilosophiedelaVie.pdf

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Roberto Machado: Nietzsche e o renascimento do trágico

Há, em O nascimento da tragédia, uma reflexão sobre o valor da Grécia para a Alemanha, que insere o primeiro livro de Nietzsche no projeto de política cultural iniciado, em meados do século XVIII, por Winckelmann, pensador que teve papel decisivo na maneira de pensar os gregos e sua importância para a educação estética da Alemanha.

Winckelmann, o criador da história da arte, foi o primeiro a dar ao classicismo alemão o seu ideal estético, ao defender tanto a superioridade da arte grega — arte que tem como essência a beleza — sobre a arte de todos os tempos, quanto a necessidade de imitá-la; foi o primeiro de uma série de teóricos e artistas dominados pela "nostalgia da Grécia", isto é, em primeiro lugar, guiados pelaconcepção dos antigos como sendo fundamentalmente os gregos — e não mais os romanos, como era para os italianos e franceses — e, em segundo lugar, convencidos da importância dos gregos antigos para a formação da Alemanha.

Assim, Winckelmann marcou decisivamente sua época ao expor, em 1755, em Reflexões sobre a imitação da arte grega na pintura e na escultura, duas idéias de grande futuro no que diz respeito à relação da Alemanha com a Antigüidade: por um lado, que o ideal da arte é "uma nobre simplicidade e uma serena grandeza", vendo em Apolo o modelo supremo da arte grega; por outro, que o único caminho para os alemães tornarem-se grandes, e se possível inimitáveis, seria a imitação dos antigos. Isto é, só deixando de imitar a imitação latina dos gregos, a do renascimento italiano ou a do classicismo francês, que sempre os teria desfigurado, a arte poderia contribuir para o nascimento da nação alemã, para a constituição da identidade alemã.

Essas idéias exerceram grande influência sobre os intelectuais alemães. Goethe, por exemplo, foi profundamente marcado pelo projeto de Winckelmann, pensando inclusive o ideal de beleza não só em relação à pintura e à escultura, mas também, e principalmente, em relação à poesia ou à arte dramática. A partir de sua viagem à Itália, realizada entre 1786 e 1788, ele começa a valorizar a noção de bela forma antiga e a querer se aproximar dela tanto pela reflexão teórica quanto pela criação artística. Podemos notar, pelos pequenos textos teóricos que escreveu a partir de então, que ele pensa as leis da arte como atemporais, isto é, que a natureza da arte é constante e imutável, mas, como em Winckelmann, essa atemporalidade significa para ele que a arte é determinada por um ideal já encarnado em algumas obras do passado, ou, mais precisamente, que o ideal da arte em estado puro já se encontra nas obras de arte gregas, pois os gregos são "um povo que possuía por natureza a perfeição", "uma perfeição inatingível".1

Mas é o texto que escreveu sobre Winckelmann, em 1805, que apresenta, de forma conceitualmente mais esclarecedora, em que consiste seu próprio elogio da Grécia. O que pensa Goethe nesse momento é que a sorte dos gregos foi articular, de modo equilibrado, todas as suas qualidades, conjugar a totalidade de suas forças, sentindo-se no mundo como um grande todo, impregnado de beleza, dignidade e grandeza. As forças do grego antigo não estavam cindidas, fragmentadas; ele era um ser uno consigo mesmo e em unidade com a totalidade do mundo. A Grécia de Goethe é um mundo em que o homem podia desenvolver todas as suas virtualidades, tornar-se um homem completo, em harmonia consigo mesmo e com o mundo.

Além disso, ao ressaltar a perfeição do modo grego de criação, Goethe exige que toda arte se submeta ao ideal da arte em estado puro, encarnado pela arte grega. Daí ele dizer: "Devemos nos afastar o menos possível da terra clássica", ou "Que cada um seja um grego a seu modo!", ou ainda "Se procuramos modelos (...) é preciso sempre voltar aos gregos, cujas obras representam sempre o homem belo."2 O que faz de Goethe, na interpretação de Schiller, um alemão que, pela força de seu pensamento, deu à sua imaginação o que a realidade moderna lhe recusava, engendrando, pela reflexão, uma Grécia. Goethe seria, assim, um espírito grego perdido nas brumas do norte, no mundo nórdico, um poeta clássico vivendo na modernidade.

Schiller, por sua vez, também critica a modernidade a partir de uma reflexão sobre a origem. Tal como ele vê o problema em Poesia ingênua e sentimental, o grego antigo vivia em profunda união com a natureza, sem fazer uma distinção radical entre natureza e cultura, sendo uno consigo mesmo e feliz no sentimento de sua humanidade. Já o homem moderno — que destrói ou esquece a natureza, ou para quem a natureza desapareceu da humanidade, e só é reencontrada em sua verdade no mundo inanimado — é um ser fragmentado, dividido, cindido de si mesmo e infeliz em sua experiência da humanidade. Daí por que os artistas modernos, rememorando as origens, devem contribuir para realizar a harmonia perdida entre o homem e a natureza, a liberdade e a necessidade. A Grécia, na qual a natureza e a humanidade eram unas em suas diferenças, é, assim, para Schiller, o modelo de um acordo que é preciso reconquistar.

O nascimento da tragédia, que se refere aos gregos como "nossos luminosos guias",3 além de reconhecer que foi com Winckelmann, Goethe e Schiller que o espírito alemão entrou na escola dos gregos, chega a lamentar o enfraquecimento desse projeto de imitação da cultura grega para a constituição da cultura alemã.4 O que mostra que continua vivo em Nietzsche o projeto de Winckelmann, Goethe e Schiller a respeito da importância de uma reflexão sobre os gregos para repensar o mundo moderno e a obra de arte moderna. Como eles, o jovem Nietzsche também é um pensador que entende melhor sua época por meio da Grécia antiga e, por isso, escreve um livro cheio de esperança em relação à germanidade, como ele mesmo diz.

Mas isso não significa que Nietzsche aceite os dados iniciais do problema, isto é, a caracterização da Grécia pela serenidade, ou pela beleza, como se os gregos tivessem sido exclusiva ou essencialmente apolíneos, conforme sugere a expressão de Winckelmann que define a essência da arte grega como "uma nobre simplicidade e uma serena grandeza". Criticando os pensadores que permaneceram com essa visão do problema, Nietzsche relacionará a serenidade com um aspecto mais profundo da Grécia: o dionisíaco. Se, então, ele se distancia do que pensadores como Winckelmann e Goethe pensaram sobre a arte grega, ao defini-la pela serenidade, é por considerar que a Grécia só pode ser pensada a partir do fundo asiático do dionisíaco, que não teria sido levado em conta por eles.

A busca de outro princípio constitutivo do mundo grego — além da serenidade — não é originalidade de Nietzsche. É antes uma constante de toda a interpretação da Grécia desde o nascimento do trágico, isto é, desde a interpretação filosófica, ontológica, metafísica, da tragédia como apresentando uma visão de mundo trágica — o que se deu com o idealismo absoluto, no final do século XVIII. É assim, por exemplo, que a primeira interpretação ontológica de uma tragédia grega — a que Schelling dá, em 1795, de Édipo rei — se baseia na oposição e na reconciliação da liberdade e da necessidade. É assim também que a interpretação hegeliana de Antígona é feita a partir da oposição entre a família e o Estado. É ainda assim que Hölderlin interpreta Édipo e Antígona a partir da oposição entre a composição orgânica representada pela sobriedade e o tumulto aórgico originário. Se, portanto, o antagonismo de princípios marca toda a reflexão moderna sobre a tragédia, a originalidade de Nietzsche é formular essa oposição como sendo a do apolíneo e do dionisíaco considerados como princípios de uma estética metafísica. O que são esses princípios?

O apolíneo é o princípio de individuação, um processo de criação do indivíduo, que se realiza como uma experiência da medida e da consciência de si. E se Nietzsche dá a esse processo o nome de apolíneo é porque, para ele, Apolo — deus da beleza, cujos lemas são "Conhece-te a ti mesmo" e "Nada em demasia" — é a imagem divina do princípio de individuação. O que se pode compreender pelas duas propriedades que ele encontra em Apolo: o brilho e a aparência. Apolo é o brilhante, o resplandecente, o solar; ao mesmo tempo, conceber o mundo apolíneo como brilhante significa criar um tipo específico de proteção contra o sombrio, o tenebroso da vida: a proteção pela aparência. A bela aparência apolínea é uma ocultação. Os deuses e heróis apolíneos são aparências artísticas que tornam a vida desejável, encobrindo o sofrimento pela criação de uma ilusão. Essa ilusão é o princípio de individuação. Assim, o indivíduo, essa criação luminosa e aparente, é o modo apolíneo de triunfar do sofrimento pela ocultação de seus traços.

Já o dionisíaco, tal como se dá no culto das bacantes — cortejos orgiásticos de mulheres, vindas da Ásia, que, em transe coletivo, dançando, cantando e tocando tamborins, nas montanhas, à noite, em honra de Dioniso, invadiram a Grécia —, em vez de um processo de individuação, é uma experiência de reconciliação das pessoas umas com as outras e com a natureza, uma harmonia universal e um sentimento místico de unidade. A experiência dionisíaca é a possibilidade de escapar da divisão, da individualidade, e se fundir ao uno, ao ser; é a possibilidade de integração da parte à totalidade. Ao mesmo tempo, o dionisíaco significa o abandono dos preceitos apolíneos da medida e da consciência de si. Em vez de medida, delimitação, calma, tranqüilidade, serenidade apolíneas, o que se manifesta na experiência dionisíaca é a hybris, a desmesura, a desmedida. Do mesmo modo, em vez da consciência de si apolínea, o dionisíaco produz a desintegração do eu, a abolição da subjetividade, o entusiasmo, o enfeitiçamento, o abandono ao êxtase divino, à loucura mística do deus da possessão.

Entretanto, a última palavra de Nietzsche a respeito do nascimento da tragédia não é o antagonismo entre o apolíneo e o dionisíaco: é a aliança entre os dois princípios metafísicos, a reconciliação entre as duas pulsões estéticas da natureza. E, nesse sentido, um dos pontos mais importantes da interpretação é a ligação entre o culto dionisíaco e a arte trágica, ou a hipótese de que a tragédia nasce dessa multidão encantada que se sente transformada em sátiros e silenos — como se vê no culto das bacantes —, ao imitar, simbolizar o fenômeno da embriaguez dionisíaca, responsável pelo desaparecimento dos princípios apolíneos criadores da individuação: a medida e a consciência de si.

E, para que essa hipótese se revele em toda sua força e originalidade, é preciso salientar os dois principais componentes dessa teoria da tragédia. Em primeiro lugar, o que torna a arte trágica possível é a música: a tragédia nasce do espírito da música, a origem da tragédia é a possessão causada pela música. Inspirado em Schopenhauer e em Wagner, que interpretaram a música como expressão imediata e universal da vontade entendida não como vontade individual, mas como essência do mundo, Nietzsche pensará a música como uma arte essencialmente dionisíaca e, portanto, o meio mais importante de se desfazer da individualidade.

Entretanto, ele acrescenta à música — componente dionisíaco da tragédia — seus componentes apolíneos: a palavra e a cena. O que o leva a definir a tragédia como um coro dionisíaco que se descarrega em um mundo apolíneo de imagens. Esse mundo de imagens criado pelo coro é o mito trágico, que apresenta a sabedoria dionisíaca através do aniquilamento do indivíduo heróico e de sua união com o ser primordial, o Uno originário.

Com que finalidade a tragédia apresenta apolineamente a sabedoria dionisíaca? Para fazer o espectador aceitar o sofrimento com alegria, como parte integrante da vida, porque seu próprio aniquilamento como indivíduo em nada afeta a essência da vida, o mais íntimo do mundo. Assim, fundada na música, a tragédia, expressão das pulsões artísticas apolínea e dionisíaca, é a atividade que dá acesso às questões fundamentais da existência.

Essa valorização metafísica da tragédia grega, que teria sido invalidada pelo racionalismo socrático, de que a modernidade é mais uma metamorfose do que uma crítica radical, implicará que a imitação dos gregos só pode ser, para Nietzsche, um renascimento de uma arte dionisíaca. O §16 do livro diz que o renascimento da tragédia é uma das "bem-aventuranças para o ser alemão". O §19 prevê que "tudo o que chamamos agora de cultura, educação, civilização terá algum dia de comparecer perante o infalível juiz Dioniso." E o §23 termina dizendo: "E se o alemão olhar, hesitante, à sua volta, em busca de um guia que o reconduza de novo à pátria há muito perdida, cujos caminhos e sendas ainda mal conhece, que ouça o chamado deliciosamente sedutor do pássaro dionisíaco que sobre ele se balouça e quer indicar-lhe o caminho para lá."5

Essa referência à Alemanha como a pátria perdida a que se poderá ter acesso pelo dionisíaco é muito importante. Pois, com isso, Nietzsche quer dizer que, se o gênio alemão "viveu a serviço de pérfidos anões", no mais profundo de si mesmo ele se conservava intacto, com toda a sua força dionisíaca. Como se o espírito trágico existente na Grécia pré-socrática, em vez de ter sido totalmente aniquilado pelo espírito socrático, tivesse se mantido vivo, embora reprimido, na profundeza adormecida do espírito alemão.

Daí Nietzsche acreditar, e enunciar no §23 do livro, que "o núcleo puro e vigoroso do ser alemão expulsará os elementos estranhos implantados à força, tornando possível que o espírito alemão retorne a si mesmo reconscientizado". O que será repetido com todas as letras em uma passagem do final do §24, cheia de alusões a personagens de mitos germânicos, retomados por Wagner e interpretados por Nietzsche como mitos dionisíacos: "O espírito alemão intacto em sua esplêndida saúde, profundidade e força dionisíaca, qual um cavaleiro prostrado em sono, repousava e sonhava em um abismo inacessível: abismo de onde se eleva até nós a canção dionisíaca, para nos dar a entender que também agora esse cavaleiro alemão ainda sonha o seu antiqüíssimo mito dionisíaco em visões austeras e beatíficas. Que ninguém creia que o espírito alemão haja perdido para sempre a sua pátria mítica, posto que continua compreendendo com tanta clareza as vozes dos pássaros que falam daquela pátria. Um dia ele se encontrará desperto, com todo o frescor matinal de um sonho imenso: então matará o dragão, aniquilará os pérfidos anões e acordará Brunhilda, e nem mesmo a lança de Wotan poderá barrar o seu caminho." Continuidade entre o mito trágico grego e o mito alemão, que faz do nascimento de uma era trágica do espírito alemão "apenas um retorno a ele mesmo, um bem-aventurado reencontrar-se a si próprio, depois que, por longo tempo, enormes poderes conquistadores, vindos de fora, haviam reduzido à escravidão de sua forma o que vivia em desamparada barbárie da forma" como é dito no final do §19 do livro.

Se, com Winckelmann, Goethe e Schiller, o espírito alemão entrou na escola dos gregos, por que Nietzsche pensa que até mesmo "Goethe e Schiller não conseguiram abrir a porta mágica que dá acesso à montanha encantada do helenismo"?6 A resposta é simples. Porque não usaram uma boa chave para isso: a música, ou melhor ainda, a tragédia musical. A esse respeito, a originalidade de Nietzsche não é propriamente sua concepção da música, que no fundo, é bastante semelhante, nessa época, às de Schopenhauer e Wagner. Sua originalidade foi, inspirado na concepção schopenhaueriana da música e na idéia wagneriana de drama musical, valorizar a música para pensar a tragédia grega como uma arte fundamentalmente musical, ou como tendo origem no espírito da música.

Mas sua originalidade está também em ter articulado Schopenhauer com o movimento de utilização da Grécia para pensar a cultura alemã, através de um renascimento do espírito trágico, idéia que não existe em Schopenhauer. E o elo que possibilitou isso foi certamente Wagner. Que se pense, a esse respeito, no Beethoven, livro da mesma época que O nascimento da tragédia, no qual Wagner destaca a importância incomparável que a música tem para o desenvolvimento da civilização alemã.

Assim, no início de sua produção intelectual, a Grécia da tragédia musical é o principal motivo da esperança de Nietzsche na Alemanha. Pois não é ele quem diz que na Antigüidade helênica "reside a esperança de uma renovação e de uma purificação do espírito alemão pelo jogo mágico da música"? Idéia que é formulada com toda a força de uma volta aos gregos, no final da conferência "O drama musical grego": "O que esperamos do futuro já foi uma vez realidade, em um passado que tem mais de dois mil anos." Esse vínculo entre o renascimento alemão da Antigüidade grega e a música, considerada como uma condição essencial do despertar do espírito dionisíaco, aparece até mesmo no curioso elogio ao profundo, corajoso e inspirado "coral de Lutero, como primeiro chamariz dionisíaco", no §23 do livro. Mas o vínculo é ainda mais evidente quando, no §19, Nietzsche defende que, do fundo do espírito alemão, a música alemã alçou-se "em seu poderoso curso solar, de Bach a Beethoven, de Beethoven a Wagner".

Se O nascimento da tragédia é um livro profundamente alemão, que fala de "problema alemão", "esperanças alemãs", "gênio alemão", "espírito alemão", "ser alemão", é devido à importância que dá à música. O §6 da "Tentativa de autocrítica", quinze anos depois, lamenta que o livro tenha estragado o problema grego misturando-o a coisas modernas por ter fabulado, "com base nas últimas manifestações da música alemã, a respeito do ser alemão (...)." Essa autocrítica posterior evidencia, no entanto, o quanto o livro estava impregnado não só por idéias germânicas como pela idéia de que a música, "demônio surgido de profundezas inexauríveis", "único espírito de fogo limpo, puro e purificador", é a força a partir da qual Nietzsche faz sua crítica à cultura alemã.

O nascimento da tragédia estabelece a origem musical da tragédia grega, e sua importância como metafísica artística, para legitimar a arte wagneriana, fazendo com que o renascimento do espírito dionisíaco tenha, para Nietzsche, como expressão mais forte, o drama musical wagneriano. Vendo Wagner como um novo Ésquilo, ou na ópera de Wagner o renascimento da tragédia grega, O nascimento da tragédia vai à arte trágica para explicar a arte wagneriana. Assim como a tragédia nasce da música dionisíaca, Wagner é o renascimento do dionisíaco, ou melhor, da tragédia grega, na modernidade, com sua obra de arte total. Daí Nietzsche anotar em 1870: "Reconheço na vida grega a única forma de vida; e considero Wagner como a tentativa mais sublime do ser alemão na direção de seu renascimento."7

Se O nascimento da tragédia é um centauro nascido do cruzamento da arte, da ciência e da filosofia, como disse o seu autor, é em uma de suas passagens mais poéticas que se revela de modo mais veemente o tom militante em favor do renascimento do trágico pela força criadora do dionisíaco musical. Tom militante que insere o primeiro livro de Nietzsche no projeto de política cultural iniciado, na Alemanha, por Winckelmann, Goethe e Schiller, principalmente, e tinha, na época de Nietzsche, Wagner como seu principal representante. Estou pensando na passagem, inspirada nas Bacantes de Eurípides, em que Nietzsche sugere a seus amigos leitores: "Coroai-vos de hera, tomai o tirso na mão e não vos admireis se tigres e panteras se deitarem, acariciantes, a vossos pés. Ousai ser homens trágicos: pois sereis redimidos. Acompanhareis, da Índia até a Grécia, a procissão festiva de Dioniso! Armai-vos para uma dura peleja, mas crede nas maravilhas de vosso deus!"8

* Convidado a participar deste número da Kriterion.
1 Introdução aos Propileus. In: GOETHE. Écrits sur l'art. Paris: Flammarion, 1983. p. 144. [ Links ]
2 "Introdução aos Propileus" e "O antigo e o moderno", op. cit., p. 144, 273; GOETHE, Conversações com Eckermann, 31 de janeiro de 1827, tr. fr. Paris: Gallimard, 1988. p. 206.
3 O nascimento da tragédia, §23.
4 O nascimento da tragédia, §20.
5 Alusão ao pássaro do Siegfried de Wagner.
6 O nascimento da tragédia, §20.
7 NIETZSCHE, Friedrich. Fragmento póstumo 9[34], de 1870. In: Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe. Editada por G. Colli e M. Montinari. Berlim/Nova Iorque: Walter de Gruyter, 1980. p. 284. v. 7; tr. fr., Oeuvres philosophiques complètes. Paris: Gallimard, 1977. p. 372. [ Links ]
8 O nascimento da tragédia, final do §20.



MACHADO, Roberto. Nietzsche e o renascimento do trágico. Kriterion [online]. 2005, vol.46, n.112 [cited 2011-01-12], pp. 174-182 . Available from: . ISSN 0100-512X. doi: 10.1590/S0100-512X2005000200003.

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Babette Babich: A Philosophical Shock’: Foucault’s Reading of Heidegger and Nietzsche

Although there is no lack of efforts to read Foucault and Nietzsche together or indeed to align Foucault and Heidegger, Foucault scholarship overall tends to be split on these same terms. The author argues that the opposition is misleading for the complicated reason that Foucault’s Heidegger can only be understood on Nietzschean terms while and at the same time, Foucault’s Nietzsche only takes place by way of Heidegger albeit (and this point simply cannot be overemphasized) a very Frencophone reading of Heidegger.

Michel Foucault analyzes the formation of the ‘subject’ or ‘self’ in a post-Nietzschean, post-Heideggerian, quasi-Marxist, or today, we had better correct that to say, just because few scholars have any desire to be named Marxist: simply, vaguely leftist context,1 exceeding what has been called the poststructuralist as much as the postmodern moment by means of different epistemic discourses of imitation, representation, but also rhetorical or ‘stylistic’ discourses and including practical or therapeutic analysis. Additionally, to recall the important question of practice and the increasingly popular language of philosophical therapy, more than Nietzsche’s vision of either convalescence (and nihilism) or healing or indeed of the philosopher as lawgiver or a physician of culture, Foucault is illuminated by Pierre Hadot’s analysis of the Stoic ‘art’ of philosophy as ‘a way of life.’ (...)

Babich, Babette, ""‘A Philosophical Shock’: Foucault’s Reading of Heidegger and Nietzsche." In: C. G. Prado, ed., Foucault’s Legacy
(London: Continuum, 2009), pp. 19-41." (2009). Articles, Book-Chapters, and Essays by Babette Babich. Paper 11.
http://fordham.bepress.com/phil_babich/11

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Charles Andler: Nietzsche, sa vie et sa pensée (1920)

[item image]
Charles Philippe Théodore Andler, né à Strasbourg le 11 mars 1866 et mort à Malesherbes le 1er avril 1933, était un germaniste français, professeur d'allemand au Collège de France et à la Sorbonne. Il est considéré comme l'un des pères fondateurs de la germanistique comme discipline universitaire.

Nietzsche, sa vie et sa pensée (1920)

Vol. 1. Les précurseurs de Nietzsche.- Vol. 2. La jeunesse de Nietzsche (jusqu'a la rupture avec Bayreuth)- Vol. 3. Nietzsche et la pessimisme esthétique.- Vol. 4. La maturité de Nietzsche (jusqu'à sa mort)- Vol. 5. Nietzsche et le transformisme intellectualiste.- Vol. 6. La dernière philosophie de Nietzsche; le renouvellement de toutes les valeurs
http://www.archive.org/search.php?query=Nietzsche%2C%20sa%20vie%20et%20sa%20pens%C3%A9e%20AND%20mediatype%3Atexts

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Nietzsche: "Périr par la connaissance absolue..."


Personne n'admettra facilement la vérité d'une doctrine simplement parce que cette doctrine rend heureux ou vertueux, exception faite peut-être des « aimables idéalistes », qui s'exaltent pour le vrai, le beau et le bien et qui élèvent dans leurs marécages, où elles nagent dans un pêle-mêle bariolé, toutes sortes de choses désirables, lourdes et inoffensives. Le bonheur et la vertu ne sont pas des arguments. On oublie cependant volontiers, même du côté des esprits réfléchis, que rendre malheureux, rendre méchant, sont tout aussi peu des arguments contraires. Une chose pourrait être vraie bien qu'elle fût au plus haut degré nuisible et dangereuse. Périr par la connaissance absolue pourrait même faire partie du fondement de l'Être, de sorte qu'il faudrait mesurer la force d'un esprit selon la dose de « vérité » qu'il serait capable d'absorber impunément, plus exactement selon le degré auquel il faudrait délayer pour lui la vérité, la voiler, l'adoucir, l'épaissir, la fausser. Mais le doute n'est pas possible, dans la découverte de certaines parties de la vérité les méchants et les malheureux sont plus favorisés et ont plus de chance de réussir. Pour ne point parler ici des méchants qui sont heureux, une espèce que les moralistes passent sous silence. Peut-être la dureté et la ruse fournissent-elles des conditions plus favorables pour l'éclosion des esprits robustes et des philosophes indépendants que cette bonhomie pleine de douceur et de souplesse, cet art de l'insouciance que l'on apprécie à juste titre chez les savants. Avec cette réserve cependant qu'on ne borne pas la conception du « philosophe » au philosophe qui écrit des livres, ou qui fait des livres avec sa philosophie. — Stendhal ajoute un dernier trait à l'esquisse du philosophe de la pensée libre, un trait que, pour l'édification du goût allemand je ne veux pas omettre de souligner ici. « Pour être bon philosophe, dit ce dernier grand psychologue, il faut être sec, clair, sans illusion. Un banquier qui a fait fortune a une partie du caractère requis pour faire des découvertes en philosophie, c'est-à-dire pour voir clair dans ce qui est. »

Par delà le bien et le mal
Prélude d’une philosophie de l’avenir
Traduction Henri Albert.
Mercure de France, 1913 [dixième édition] (Œuvres complètes de Frédéric Nietzsche, vol. 10, pp. 51-83).
http://fr.wikisource.org/wiki/Par-del%C3%A0_le_bien_et_le_mal/Chapitre_II._L%E2%80%99esprit_libre#39.

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Nietzsche: Classificacion (Aurora, #446)

Nietzsche

Clasificación
. Hay, primero, pensadores superficiales; segundo, pensadores profundos, que ven en las profundidades de las cosas; y, tercero, pensadores fundamentales, que descienden hasta el fondo último de las cosas, lo que tiene más valor que asomarse simplemente a sus profundidades. Por último, hay pensadores que sumergen la cabeza en la ciénaga, lo que no debe tomarse como una muestra de profundidad ni de pensamiento profundo.

Madrid: M. E. EDITORES, 1994
http://www.4shared.com/get/VcNOtDLp/Friedrich_Nietzsche_-_Aurora.html


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Nietzsche: #243 Vontade de Potencia

Quando, pelo uso, numa grande cadeia de gerações, armazenamos por assim dizer a moral, isto é, suficiente refinamento, bravura, previdência, eqüidade, a força total desta virtude acumulada irradia também no espírito, e esse fenômeno torna visível o que chamamos a lealdade intelectual. Esta apresenta-se muito raramente, e falta entre os filósofos.

Podemos pesar na balança o espírito científico de um pensador, ou, para me exprimir do ângulo da moral, sua lealdade intelectual, seu refinamento, sua bravura, sua previdência, sua moderação tornados instinto e transportados ao domínio do espírito: basta fazê-los falar em moral... e então os filósofos mais célebres mostram que seu espírito científico é somente uma coisa consciente, uma tentativa, um empreendimento de “boa vontade”, uma fadiga, e que, no momento em que o instinto se manifesta, no momento em que moralizam, simplesmente são impulsionados pela disciplina e pela consciência de espírito.

O espírito científico: resta saber se é simplesmente o resultado de um amestramento exterior, ou então o resultado final de uma longa disciplina e deu um exercício moral prolongado. — No primeiro caso, intervém no momento em que fale o instinto (por exemplo, o instinto religioso e o instinto do dever); noutro caso age em nome destes instintos e não os deixa mais atingir os seus direitos, considerando-os como indecências e seduções...

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Nietzsche: Vivir es inventar (Aurora #119)

Sea cual sea el grado de autoconocimiento que alcancemos, lo más incompleto será siempre la imagen que nos formamos de nuestra individualidad. Ni siquiera podemos designar los instintos más primarios; su número y su fuerza, su flujo y su reflujo, su acción recíproca, y, sobre todo, las leyes que rigen su satisfacción, nos son totalmente desconocidas. En consecuencia, esta satisfacción es obra del azar; los sucesos de nuestra vida cotidiana lanzan su presa a un instinto o a otro, que se apodera de ella con avidez, pero el vaivén de estos sucesos no guarda ninguna correlación razonable con las necesidades de satisfacción del conjunto de los instintos, de forma que siempre ocurrirán dos cosas: que unos adelgazarán y se morirán de inanición, y otros estarán sobrealimentados. Cada momento de nuestra vida hace que crezca alguno de los tentáculos de ese pulpo que es nuestro ser, y que otros se sequen, según el alimento que dicho momento les da o les deja de dar. Desde este punto de vista, todas nuestras experiencias son alimentos, aunque esparcidos por una mano ciega que ignora quién tiene hambre y quién está harto. Habida cuenta de que es el azar quien se encarga de nutrir cada una de sus partes, el estado de) pulpo, en cuanto a su desarrollo completo se refiere, resulta tan fortuito como lo fue su propio desarrollo. Por decirlo más exactamente, si un instinto se encuentra en situación de tener que ser satisfecho, o de ejercer su fuerza, o de satisfacerla, o de llenar un vacío —hablando en lenguaje figurado—, considerará cada suceso del día para ver cómo puede usarlo con vistas a ese fin. Cualquiera que sea la situación del hombre —ya ande o repose, lea o hable, se enoje y luche o esté alegre —, el instinto excitado tanteará cada una de estas situaciones. En la mayoría de los casos, no hallará nada a su gusto y habrá de esperar y continuar sediento. Si pasa algún tiempo, se debilitará; y si no es satisfecho en el plazo de unos días o de unos meses, se secará como una planta a la que le falta agua.

Esta crueldad del azar quedaría tal vez de manifiesto con colores más vivos, si todos los instintos exigieran ser satisfechos con tanta urgencia como el hambre, que no se contenta con alimentos vistos en sueños; pero la mayoría de los instintos, sobre todo los llamados «morales», se satisfacen así, si es que cabe suponer que los ensueños pueden servir para compensar de algún modo la falta accidental de alimento durante el día. ¿Por qué el ensueño de ayer estuvo impregnado de ternura y de lágrimas, el de anteayer resultó agradable y fantasioso, y otros, más lejanos aún, fueron aventureros y llenos de ansiosas búsquedas? ¿A qué se debe que en este ensueño disfrute de las bellezas inefables de la música y en aquel otro vuele y me eleve por encima de las más altas cumbres, con la voluptuosidad del águila? Estas fantasías en las que se descargan y se ejercitan nuestros instintos de ternura, de ironía o de excentricidad, nuestras ansias de música o de elevación (y cada uno de nosotros podría poner ejemplos más elocuentes) son las interpretaciones de nuestras excitaciones nerviosas durante el sueño, interpretaciones muy libres y muy arbitrarias, de la circulación sanguínea, de la acción intestinal, de la presión de los brazos o de la ropa de la cama, del sonido de las campanas de una iglesia, del chirrido de una veleta, de los pasos de un noctámbulo y de otras cosas por el estilo. Si este texto que, por lo general, suele ser el mismo una noche que otra, recibe comentarios tan variados que hasta la razón creadora imagina, ayer u hoy, causas tan diferentes para las mismas excitaciones nerviosas, ello se debe a que el inspirador de esta razón es diferente hoy que ayer; ayer era un instinto el que quería satisfacerse, manifestarse, ejercitarse,
aliviarse y descargarse; y hoy es otro.

La vida en estado de vigilia no posee la misma libertad de interpretación que la vida del ensueño; es menos poética, menos descontrolada; pero ¿he de decir que nuestros instintos, en estado de vigilia, no hacen tampoco otra cosa que interpretar las excitaciones nerviosas y determinar las causas de estas necesidades de los instintos? ¿He de añadir que no existe una diferencia esencial entre el estado de vigilia y el de ensueño; que incluso comparando grados de cultura muy diferentes, la libertad de interpretación que se ejerce en uno de tales grados no es inferior en nada a la libertad de interpretación en sueños del otro grado; que nuestras valoraciones y nuestros juicios morales son más que imágenes y fantasías que encubren un proceso fisiológico desconocido para nosotros, una especie de lenguaje convencional con el que se designan determinadas excitaciones nerviosas; que todo lo que llamamos conciencia no es, en suma, sino el comentario más o menos fantástico de un texto desconocido, quizá incognoscible, pero presentido?

Fijémonos en cualquier hecho insignificante. Supongamos que, al atravesar una plaza pública, un individuo se burla de nosotros. Según domine en nuestro interior un instinto u otro, este incidente tendrá para nosotros tal o cual significación, y de acuerdo con el tipo de persona que seamos, el hecho en cuestión tendrá un carácter distinto. Para uno la burla le resultará tan indiferente como una gota de lluvia; otro se la quitará de encima como si se sacudiera una mosca; otro verá en esto un motivo de pendencia; otro examinará su ropa por si hay en ella algo que haga reír; otro pensará, como consecuencia de ello, en lo ridículo en sí; y hasta puede que haya alguien que se alegre de haber contribuido involuntariamente a añadir un rayo de sol a la alegría del mundo. En cada uno de estos casos, se satisface un instinto, ya sea el de despecho, el de agresividad, el de reflexión o el de benevolencia. Cualquiera de estos instintos se apodera del incidente como si fuera una presa. Pero ¿por qué precisamente lo hace uno en concreto? Porque estaba al acecho, ávido y hambriento.

Hace un momento, a las once de la mañana, un hombre se ha desplomado fulminantemente a mis pies. Todas las mujeres del vecindario se han puesto a dar gritos. Yo me he levantado y he estado esperando a su lado a que recobrara el habla. Mientras lo he estado haciendo, no se ha alterado ni un solo músculo de mi rostro, ni se ha apoderado de mí ningún sentimiento de miedo o de compasión. He hecho sencillamente lo que había que hacer, ¡o más urgente y razonable, y luego me he marchado impasible. Si el día anterior me hubieran anunciado que al día siguiente, a las once, iba a desplomarse un hombre a mis pies, habría sufrido las ansiedades más diversas, no habría dormido en toda la noche, y en el momento decisivo, tal vez me hubiera sucedido lo mismo que a ese hombre, en lugar de ayudarle. En este espacio de tiempo, todos los instintos imaginables habrían tenido tiempo de representarse el suceso y de comentarlo. ¿Qué son, entonces, los sucesos de nuestra vida? Es mucho más lo que ponemos en ellos que lo que contienen en realidad. Cabría decir incluso que, en sí mismos, son vacíos. Vivir equivale a inventar.

Madrid: M. E. EDITORES, 1994
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Nietzsche: #99 Vontade de Potencia

a) Para a história do cristianismo

(99) O sacerdócio judaico soube apresentar tudo o que ele exigia, como se fosse preceito divino, como obediência a mandamentos divinos, e também introduzir tudo o que servia para conservar Israel, para lhe facilitar a existência (por exemplo, um conjunto de práticas religiosas: a circuncisão, o sacrifício, como centro da consciência nacional), não como obra da natureza, mas como obra de “Deus”. — Esse processo continua; dentro do judaísmo, desde que não se sentiu mais a necessidade das “práticas religiosas” (como baluarte contra o exterior), podiam conceber uma espécie sacerdotal de homens que se comportaria como a “natureza nobre” em face da aristocracia; um caráter sacerdotal da alma, sem castas e de qualquer maneira espontâneo, que para se diferenciar fortemente de seu oposto, concederia importância não às “práticas religiosas”, mas aos sentimentos...

No fundo, tratava-se de fazer vingar, de novo, certa categoria de almas: era de qualquer maneira uma insurreição popular no meio de um povo sacerdotal, — movimento pietista que vinha de baixo (os pecadores, os publicanos, as mulheres e os doentes). Jesus de Nazaré era a palavra de ordem sob a qual se reuniam. E de novo, para poder crer em si mesmos, tiveram necessidade de uma transfiguração teológica; tiveram necessidade do “filho de Deus”, nada menos que isso para obter confiança. E da mesma forma que os sacerdotes falsificaram completamente a história de Israel, retornam à mesma tentativa, para falsificar, para transformar toda a história da humanidade, no intuito de fazer aparecer o cristianismo, como o acontecimento cardeal. Este movimento somente se poderia organizar sobre o terreno do judaísmo, do qual o traço capital era o de ter confundido a culpa e a desgraça e de transformar toda culpa em pecado ante Deus: o cristianismo eleva tudo isso à segunda potência.

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Nietzsche: #87 Vontade de Potencia

Da origem da religião. — Da mesma maneira que o homem vulgar imagina ainda hoje que a cólera é a causa de seu arrebatamento; o espírito, a causa do pensamento; a alma, a causa do sentimento; em suma, da mesma forma que se admite ainda, inconsideradamente, inúmeras entidades psicológicas como causas — igualmente, ainda na mais ingênua escala social, o homem interpreta os fenômenos com a ajuda de entidades psicológicas personalizadas. Os estados de alma que lhe pareciam estranhos, arrebatadores, apaixonantes, considerava-os, obsessões, encantamentos provocados pelo poder de alguém. (E assim que o cristão, hoje, a mais ingênua e atrasada categoria humana, condiciona a esperança, a tranqüilidade, o sentimento de “redenção”, a uma inspiração psicológica de Deus. Por ser o tipo essencialmente sofredor e inquieto, a quietude, a felicidade, a resignação, parecem-lhe como algo de estranho que necessita uma explicação.) Entre as raças de grande vitalidade, inteligentes e fortes, é o epiléptico que desperta mais comumente a convicção de que existe a intervenção de uma potência estranha; mas toda espécie de sujeição da mesma ordem, por exemplo: o constrangimento que se nota no entusiasta, no poeta, no grande criminoso, nas paixões como o amor e o ódio, arrasta à invenção de potência extra-humanas. Concretizam o estado de alma em uma única pessoa, e pretendem que, quando se nos manifesta, é por influência dessa pessoa. Em outras palavras: na formação psicológica de Deus, um estado, para ser o efeito de alguma coisa, é personificado.

Contudo a lógica psicológica diz assim: o sentimento de potência, quando subitamente se apossa do homem e o subjuga — é o caso de todas as grandes paixões — desperta certa dúvida quanto à capacidade da pessoa: o homem não ousa imaginar que é a causa desse sentimento — imagina uma personalidade mais forte, uma divindade que o substitui.

A origem da religião encontra-se, portanto, nos extremos sentimentos de potência que surpreendem o homem por seu caráter estranho; e, semelhante ao doente que ao sentir estranhos torpores em um de seus membros daí concluísse que sobre ele outro homem estivesse deitado, o ingênuo homo religiosus se dissocia em diversas pessoas. A religião é um caso de “alteração da personalidade”, espécie de sentimento de terror e de medo diante de si mesmo... Mas, ao mesmo tempo, extraordinária sensação de felicidade e de superioridade. Nos doentes, a impressão da saúde basta para que creiam em Deus, na influência de Deus.

Os estados de potência inspiram no homem a sensação de que ele é independente da causa, que é irresponsável: sobrevêm sem serem desejados, logo não somos os autores... A vontade não libertada (isto é, a consciência de uma mutação em nós, sem que a quiséssemos) exige urna vontade estranha.

O homem não ousou atribuir a si mesmo todos os momentos surpreendentes fortes de sua vida, imaginou que esses momentos eram “passivos”, que os “sofria”, e a eles estava “subjugado”... A religião é um produto da dúvida quanto à unidade do indivíduo, uma alteração da personalidade... A proporção que tudo quanto é grande e forte foi sendo considerado sobre-humano e estranho pelo homem, este foi se amesquinhando e separou s duas faces em duas esferas absolutamente diferentes, uma desprezível e fraca, outra forte e surpreendente, chamando à primeira “homem”, à segunda, “Deus”.

E portou-se assim quase sempre; no período da idiossincrasia moral, não considerou como “desejadas”, como “obra do indivíduo”, suas sublimes condições morais. O cristão também substitui sua pessoa em duas ficções, uma mesquinha e fraca, a que chama homem, outra sobrenatural, a que chama Deus (Salvador, Redentor)...

A religião amesquinhou o conceito “homem”; sua extrema conclusão é que tudo quanto é bom, grande, verdadeiro, permanece sobre-humano e só nos é dado pela graça...

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Nietzsche: Para la critica de los psicologos (Voluntad de Potencia)





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Sobre este libro

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Cours Eric Blondel: Nietzsche Par-delà Bien et mal

Au début de la Généalogie de la morale, Nietzsche s’interroge et exprime ses soupçons quant à l’origine de la morale. Nietzsche mène une réflexion sur la provenance de nos préjugés moraux, sur l’origine du mal, sur la préhistoire du Bien et du Mal. Nietzsche examine également la valeur de la pitié et de la morale de la pitié, des « valeurs » morales.

Pour Nietzsche, l’origine de la morale se trouve dans les pulsions. Ce n’est pas celle qui est reconnue et qui la font provenir des idéaux. Ainsi Nietzsche soupçonne, s’interroge, se méfie de ce qui est établi officiellement. Le psychologue et le généalogiste qu’il est constate que les idéaux moraux sont des travestissements, pour mieux cacher une origine considérée comme honteuse (pudenda origo) – cette expression se trouve à plusieurs endroits dans l’œuvre de Nietzsche, par exemple dans Aurore.

Il y a donc de quoi se cacher et non pas de se vanter. Les idéaux moraux ne sont pourtant pas descendus du ciel, ils n’existent pas comme le “Bien en soi” platonicien. Ils n’ont pas de fondement dans “l’être”, dans la “vérité absolue”. Les “idéaux moraux” ne sont que, ne sont seulement que (expression que Nietzsche emploie souvent) le travestissement de certains jeux pulsionnels et donc de certaines typologies, de certains types d’organisation des pulsions entre elles. [source: philopsis]

Plan du cours :
- Avant-propos : civilisation et morale
- Etude du § 186 de Par-delà Bien et mal
- Textes à l’appui
- Etude du § 187 de Par-delà Bien et mal
- Texte à lappui

Documents joints

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Nietzsche - Par delà le bien et le mal (1913)

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Nietzsche - Par delà le bien et le mal, traduit par Henri Albert (1868-1921)

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Hegel: "Antropologia"












Hegel Textos Escolhidos

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Alexandre Kojève: Introdução à leitura de Hegel

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Juan A. Bonaccini: Nota sobre o problema da fundamentação última na Begriffsschrift de Fichte

Neste trabalho é analisada a estratégia da exposição de Fichte em seu escrito Sobre o conceito da Doutrina da Ciência (1794) e interpretada como indo de encontro a um determinado tipo do ceticismo moderno. Todavia, ao contrário da leitura proposta por Rockmore, que sustenta ser possível considerar toda a epistemologia fichteana dessa época como uma linha de argumentação de cunho pragmático e antifundacionista, defende-se a tese de que Fichte está comprometido desde o início com a tarefa de uma fundamentação última de toda ciência a partir de um primeiro princípio. Esta fundamentação seria levada a cabo mediante uma demonstração indireta que pretende refutar de modo muito original objeções levantadas por Maimon, por Schulze e outros contra a filosofia transcendental de Kant. O mero fato de que Fichte não considerasse este último princípio como passível de demonstração direta não é suficiente para tachar sua estratégia de pragmática.

http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/doispontos/article/download/9531/6609

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Gilles Blanc-Brude: Psychologie et Anthropologie dans la Philosophie de Kant

La philosophie de Kant n’est pas le refus de toute psychologie. Malgré l’incertitude de la position systématique d’une connaissance empirique de l’esprit et l’impossibilité de lui appliquer les mathématiques pour la rendre rigoureusement scientifique, malgré la vacuité d’une déduction a priori des propriétés transcendantes de l’âme et l’inanité d’une fondation psychologique de la logique, de l’esthétique et de la morale, bref, malgré l’antipsychologisme et l’antinaturalisme, les thèmes et les questions psychologiques conservent pour Kant une légitimité et un intérêt. Les Leçons d’anthropologie et l’Anthropologie du point de vue pragmatique en
témoignent. L’étude des particularités de l’esprit humain et de ses facultés n’a jamais cessé de retenir l’attention d’un penseur qui aura été, dans la lignée des moralistes français, un grand observateur de la nature humaine. Ces textes sont pourtant souvent déconsidérés et tenus pour marginaux relativement aux grandes œuvres critiques. Nous pensons néanmoins que la psychologie développée par Kant dans le cadre de ses leçons d’anthropologie est inséparable du déploiement concomitant de la philosophie critique et qu’il faut par conséquent articuler ensemble ces deux dimensions de sa pensée.

http://www.paris-sorbonne.fr/fr/IMG/pdf/Position_de_these-7.pdf

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A estrutura da vida psíquica, segundo Dilthey

Ideen uber eine beschreibende und zergliedernde Psychologie, cap. VII. G. S., V, págs. 200-201, trad. Murilo Cardoso de Castro (fonte)

O mesmo encontra-se em uma variação de estados, que se reconhecem como unitários mediante a consciência da mesmidade da pessoa; acha-se ao mesmo tempo condicionado por um mundo exterior e em reação sobre este, reconhecendo-o, muito embora compreendido em sua consciência e determinado pelos atos de sua percepção sensível. Encontrando-se assim a unidade vital condicionada pelo meio em que vive, ao mesmo tempo que pela reação sobre ele, disso resulta uma articulação de seus estados interiores. A esta denomino a estrutura da vida psíquica. E ao apreender esta estrutura a psicologia descritiva, descobre-lhe a conexão que une as sucessões psíquicas em uma totalidade. Esta totalidade é a vida.

Todo estado psíquico apareceu em mim em um tempo dado e desaparecerá por sua vez em um dado tempo. Tem um curso: começo, meio e fim. 6 um processo. Em tneio à variação destes processos, só é permanente o que constitui a forma de nossa vida consciente mesma: a relação correlativa do mesmo e o mundo objetivo. A mesmidade na qual estão em mim ligados os processos, não é ela mesma um processo, não é passageira mas permanente, como minha própria vida, ligada com todos os processos. Do mesmo modo é este um mundo objetivo, que existe para todos, era antes de mim e será depois de mim, como limitação, correlato, oposição desse mesmo com aquele estado consciente, a um só tempo. Portanto, tampouco a consciência dele é um processo, ou um agregado de processos. Mas tudo o mais que há em mim, fora desta relação correlativa do mundo e eu mesmo, é processo.

Estes processos se sucedem no tempo. Mas frequentemente posso também dar-me conta de uma conexão interior dos mesmos. Percebo que uns produzem outros. Assim, um sentimento de repulsa produz a tendência e o impulso a afastar seu objeto de minha consciência. Assim as premissas produzem a conclusão. Em ambos os casos dou-me conta desse produzir. E estes processos sucedem-se, mas não como ondas, uns após outros, cada qual separado dos demais, como fileiras de uni regimento de soldados, sempre com um espaço intermédio. Nesse caso, minha consciência seria intermitente: pois uma consciência sem um processo em que esteja, é um contra-senso. O que percebo, dentro de minha vida desperta, é uma continuidade. Os processos amontoam-se e ligam-se de tal modo, que sempre há algo presente em minha consciência. Do mesmo modo que um viajante que avança rapidamente vê desaparecer atrás de si objetos que um momento antes tinha diante dos olhos ou junto a si, e aparecer outros, enquanto a continuidade da paisagem permanece.

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Benedito Nunes: Filosofia da Vida em Dilthey

Se a "filosofia da vida" é caudalosa e difusa, o termo "vida" é extensivo e ambíguo: sujeito e objeto ao mesmo tempo, tal como empregado por Dilthey, é acolhido por Heidegger em seu Interpretações Fenomenológicas de Aristóteles, de 1922, um escrito dirigido a Paul Natorp, em Marbourg, e que constitui o primeiro esboço da Analítica do Dasein. Neste ponto, Heidegger trata da vida fática [dem faktischen Leben] e dá a explicitação de sua mobilidade fundamental como fim da pesquisa filosófica, que tem por objeto o Dasein humano [menschliches Dasein], interrogando-o do ponto de vista do seu ser. "A polissemia do termo vida, e seu uso equívoco, não deve servir de pretexto para rejeitá-lo simplesmente", escreve Heidegger.

Encontramos depois em Ser e Tempo duas referências a Dilthey, cuja obra se esgalhou em dois ramos principais: o epistemológico, das ciências do espírito [Geisteswissenschaften], e o histórico, relativo às visões do mundo [Weltanschauungen], a partir de uma concepção da experiência da vida, enquanto conexão de vivências [Erlebnissen]. Heidegger se refere, em Ser e Tempo, a esses dois tópicos. A conexão de vivências, como mostra a própria expressão "experiência da vida", em Dilthey, é de caráter psicológico. Baseia-se na estrutura psíquica do ser humano, assentando nas três funções anímicas - afetividade, inteligência e vontade - que condicionam a nossa relação com o mundo, imprimindo direção ao conhecimento teórico e à atividade prática.

Cabe, neste momento, voltarmos à expressão de Schlegel: "a filosofia sempre começa no meio, como a poesia épica". Para Dilthey, o in media res é a experiência da vida; desse modo, a filosofia depende das conexões psíquicas do ser humano, pois que são essas conexões que regem as suas relações com o mundo. Realçava, portanto, a "filosofia da vida" o elemento pré-teórico do pensamento. Sabemos que Dilthey procurou, na vertente epistemológica de sua obra, determinar uma razão histórica, por oposição à razão predominante nas ciências da natureza. Desse ponto de vista, estabeleceu a distinção, que continua a ser discutida, entre a explicação (nas Ciências da natureza) e a compreensão (nas Ciências do espírito). Como as Ciências do espírito, que culminam na História e têm por base a Psicologia, abrangem setores de uma só realidade histórica (Moral, Direito, Arte etc.), o problema com o qual se defronta Dilthey é a possibilidade do conhecimento histórico, ou de uma razão histórica. Mas que conhecimento histórico é esse que decorre de um lastro psíquico, baseado em funções vitais, anímicas, que são um derivativo da teoria das faculdades da alma?

Vamos resumir o ponto de vista de Dilthey. As ciências da natureza investigam fatos; suas conclusões são hipotéticas, mediante o estabelecimento de leis. Explicam os fenômenos subsumindo-os a leis, remontando a uma determinação geral, a uma legalidade, o que dá resposta a uma situação externa. Nas Ciências do espírito, os fenômenos são internos, a realidade apresentando-se como uma conexão viva, originariamente dada, primária, segundo o próprio Dilthey, ao tratar da "Psicologia descritiva". Uma conexão primária é aquela que não pode ser reduzida a um conceito, mas que é determinativa para a elaboração dos próprios conceitos. Por isso, a natureza é explicada, e a vida anímica, prolongando-se na história, é compreendida. O que é a vida anímica? É a vida dos sujeitos psicofísicos, individuais, que têm as suas determinações, as suas categorias próprias.

A primeira determinação categorial é a temporalidade, que implica a relação do presente com o passado e de ambos com o futuro. Mas a "filosofia da vida" não privilegiaria o futuro, como de certa forma Heidegger o fez na concepção da temporalidade. A "filosofia da vida" privilegiou o nexo do presente com o passado. Essa relação do presente com o passado constitui o curso de vida. Escreve Dilthey:
O viver é um transcurso no tempo, em que cada estado, antes de converter-se em objeto distinto, já está mudando, pois que o momento seguinte se constrói sobre o anterior e, nesse transcurso, cada momento, entretanto não captado, se transforma em passado.
Não se pode, entretanto, sair com facilidade do âmbito psicológico, porque o curso de vida se compõe de vivências, sempre referidas ao Eu. Se falamos em vivências, falamos do modo de viver algo, o que significa subjetivizar aquilo que acontece. Vivência é sempre vivência de alguém. Entretanto, as vivências se ordenam, têm conexão entre si; e Dilthey aponta essa conexão como outra das categorias da vida. Suporte das duas categorias, a temporalidade e a conexão, a vivência equivale à vida; mas a vida não é uma entidade biológica, e sim a vida de alguém, a vida do objeto no sujeito e para o sujeito. Na "filosofia da vida" de cunho biológico, como a de Bergson, sobressai o conceito de evolução progressiva, criadora, que denomina um dos mais conhecidos escritos desse filósofo. A vivência é a unidade do que é psíquico, a vivência da própria vida [Erleben des eignen Lebens], que Dilthey, sem fugir à tautologia, trata a título de compreensão originária, de forma originária do compreender. Esta se alarga, porém, com a compreensão da vida de outrem, da vida estranha a mim. Mas, nesse plano, a vida estranha a mim é a vida histórica; e dada a importância do passado, na categoria da temporalidade em Dilthey, eu só posso recuperar a vida histórica por intermédio de uma empatia [Einfühlung], sentindo-a como aquilo que me é estranho. Queremos mostrar que a compreensão é coesiva da vivência e da reflexão que a transvive pela memória. Mas, segundo adverte Dilthey, em diversos textos, a compreensão não é a compreensão da vida, a decifração do que ela é em si; se a compreendemos é porque nela já estamos, como no palco onde o pensamento vai se desenvolver. O que compreendemos, portanto, não é a vida em si, que permanece um enigma; compreendemos os significados em que a vida se traduz ou se exprime, ou seja, as categorias da vida. Se falamos de expressão, falamos também de valor. A expressão varia conforme os valores e os fins que são visados pelo homem.

Mas não podemos omitir o prolongamento da vida que subsidia essa compreensão: a ação recíproca das unidades psicofísicas, isto é, dos indivíduos, de que nasce a realidade sócio-histórica. Sob esse aspecto Dilthey tem uma vinculação muito forte com Hegel, já denunciada pelo próprio elo das "Ciências do Espírito" com a tradição hegeliana. Justamente a expressão dessa realidade sócio-histórica está nos produtos da cultura. Como o essencial é psíquico, portanto subjetivo, a realidade sócio-histórica, que provém da ação recíproca dos indivíduos, objetifica o psíquico nos produtos da cultura. Na terminologia hegeliana, seriam estes objetificações do espírito. E uma das principais objetificações do espírito é o produto cultural que chamamos de escrita. Se é assim, também, do ponto de vista da expressão, firma-se uma das categorias principais da vida: o significado. Não há nada que o homem possa viver quer individual, quer culturalmente, que seja destituído de significado. Dilthey chega mesmo a afirmar que "o significado é a categoria mais ampla com que abarcamos a vida".

Heidegger, porém, diga-se de passagem, vai desvincular a apropriação filosófica do significado da atividade do espírito. Em Ser e Tempo, a significatividade, ou a "significância", surge do próprio comportamento humano na sua prática cotidiana. Isso nos mostra antecipadamente, também, o lado "pragmático", que não pode deixar de ser considerado da filosofia heideggeriana, já entrevisto na aproximação do filósofo com Aristóteles, não só através da Metafísica, como também da Ética a Nicômaco. Quem fala deste último, fala da sophrosine, que é a virtude prática por excelência.

Fonte: Speculum

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Maria Nazaré de Camargo Pacheco Amaral: DILTHEY – CONCEITO DE VIVÊNCIA E OS LIMITES DA COMPREENSÃO NAS CIÊNCIAS DO ESPÍRITO

Trans/Form/Ação, São Paulo, 27(2): 51-73, 2004

Objetivação da vida: vivência e realidade

A experiência de resistência do movimento e de inibição da vontade sofrida por nós no meio em que vivemos constitui, para Dilthey, a origem mais elementar de nossa crença na realidade do mundo exterior. Contrariamente ao que outros filósofos têm tentado fazer, isto é, provar ou contestar a existência do mundo exterior apoiados na lógica da razão, Dilthey prefere fazer repousar a sua "prova" em uma crença. O homem se exercita no jogo vivo entre impulso e resistência, jogo a partir do qual se organiza o nexo adquirido de nossa vida psíquica. Ora, esse nexo adquirido extrai sua vitalidade da totalidade de nossas forças psíquicas ao experimentarmos a resistência de nossos impulsos, ou em outras palavras, da totalidade de nossas vivências.

Em substituição à experiência mutilada da realidade, oferecida pelo sujeito cognoscente da filosofia tradicional do conhecimento, Dilthey oferece-nos o conceito de vivência, símbolo verdadeiro da experiência "plena e não mutilada" da realidade igualmente "plena e total".3

Uma observação de Frithjof Rodi em relação ao conceito de vivência faz-se oportuna: "Este conceito Erlebnis que deve expressar a totalidade da relação com a realidade transformou-se, sob influência de Dilthey, em uma das palavras mais em voga dentro da filosofia alemã do século XX".4

Poderíamos dizer que, ao se projetar para além dos limites da filosofia diltheyana, a palavra Erlebnis apenas deu vazão à força de conceito fundamental que tem para o pensamento de seu autor. Uma prova da importância desse conceito encontra-se naquilo que constitui a tese basilar do pensamento de Dilthey: "As ciências do espírito estão, assim, fundadas nesse nexo de vivência, expressão e compreensão".5 No relacionamento desses três pilares sustenta-se para Dilthey a possibilidade de construção e compreensão do mundo histórico, como conquista valiosa das ciências do espírito.

Poderíamos começar argumentando que vivência é a própria vida reduzida nas suas proporções mais diminutas e ao mesmo tempo mais fidedignamente representativas do modelo em tamanho original. Poderíamos também lembrar as palavras de Dilthey em seu Tratado da Realidade (l890), salientando que a vivência, ao encerrar a própria vida é, como esta, "continuamente sua própria prova".6 Isto significa dizer que ela constitui a zona limite do conhecimento, isto é, o último fundamento do conhecimento. É como se, ao conter a vitalidade em toda a sua força de expressão, estabelecesse o marco divisório para além do qual o pensamento não tivesse acesso. Ou, ainda de outro modo, a vivência constitui o próprio critério vivo responsável pela triagem dos fatos da consciência, já que para o autor estes são dados em nossas vivências.

A condição fundamental imposta pelo princípio da fenomenalidade, para a determinação dos fatos da nossa consciência, resume-se na necessidade de eles serem vivenciados por nós. E Dilthey é categórico em sua afirmação: "Os pressupostos fundamentais do conhecimento estão dados na vida e o pensamento não pode conceber por trás deles".7 Para além dos fatos da consciência, que são dados na totalidade de nossa vida psíquica, só existe o sinal vermelho, símbolo da impossibilidade de ultrapassagem em busca de um ponto transcendentalmente sólido. Essa advertência deverá ser rigorosamente cumprida, pois caso contrário a penalidade imposta será em todos os casos, sem admitir nenhuma exceção à regra, necessariamente fatal. À menor infração a esse princípio fundamental corre-se o risco de perder a sintonia com a vida e com ela a possibilidade de compreender o mundo humano histórico-social.

Vejamos a seguir como Dilthey estabelece o relacionamento entre experiência e realidade. Dentre as denominações de sua "filosofia da vida" encontra-se também a de "filosofia da realidade" ou "filosofia da experiência", ou ainda "empiria e não empirismo". Para "todas" elas os fatos da consciência não resultam de meras operações intelectuais, de representações que não podem nunca nos oferecer a realidade plena e total, procedente apenas do cumprimento amplo e irrestrito das exigências vitais, impostas ao nosso conhecimento pela totalidade de nosso nexo psíquico. Mais ainda, fatos da consciência não se reduzem a uma esfera de imagens desconectadas das relações concretas com o mundo exterior. E é dentro dessa linha de pensamento que a vivência é erigida à condição de categoria epistemológica fundamental em oposição ao conceito de representação.8 Se ela pode ser assim considerada é porque, para Dilthey, ela contém em si as categorias teóricas do conhecimento, como formas da realidade objetiva. Todas as categorias da realidade objetiva fazem parte das vivências por constituição. É o que podemos apreender da seguinte afirmação de Dilthey, incluída em seu " Tratado da Realidade" (l890): "O valor do conhecimento da oposição do eu e do objeto não é também o de um fato transcendente, senão que o eu e o outro ou exterior são precisamente nada além do que é contido e dado nas experiências da própria vida. Esta é toda a realidade".9

Poderíamos, então, dizer que em meio às condições, delimitações e restrições impostas pelo pensamento diltheyano, a realidade confunde-se com a vivência, isto é, o que é real é vivenciado e o que é vivenciado é realidade. A partir daí, torna-se claro para nós que o fato de existir ou não uma realidade objetiva, independentemente de nossa consciência, é uma questão desprovida de vitalidade em meio a esse cenário. Dilthey não deixa nenhuma sombra de dúvida a esse respeito em sua obra A Construção de Mundo Histórico nas Ciências do Espírito (l9l0):

Não há ninguém nem nada que fosse para mim apenas objeto e não contivesse pressão ou estímulo, alvo de uma aspiração ou compromisso da vontade, importância, exigência a ser tomada em consideração e proximidade interior ou resistência, distância e estranheza. A referência à vida, seja ela limitada a um dado momento ou duradoura, transforma para mim esses homens e objetos em representantes de felicidade, alargamento de minha existência, aumento de minha força, ou eles restringem nessa referência o espaço da minha existência, eles exercem uma pressão sobre mim, eles diminuem minha força.10

Pelo que nos é dado perceber, as pessoas e os objetos não são frios e distantes dos nossos propósitos, mas têm significado e valor para nós, na medida em que são portadores em potencial de nossa felicidade ou desgraça, nossa alegria ou tristeza, do aumento ou diminuição de nossa energia vital, etc.

Vivência e Categoria do Significado

Tendo, então, como pano de fundo o significado dos objetos e das pessoas para nós, Dilthey "distingue" a concepção do objeto, a atribuição de valor e o estabelecimento de fins como tipos de comportamento de incontáveis nuanças que se transformam entre si. Eles se encontram no curso da vida ligados em nexos interiores que abrangem e determinam toda atividade e desenvolvimento".11 Dito de outro modo: conceber algo, atribuir valor e estabelecer fins para algo são atitudes vitais interdependentes que configuram as vivências e, assim sendo, nos ajudam a construir a própria realidade em que vivemos. Vivência e realidade são como que tecidas conjuntamente graças ao apoio da "categoria do significado". Afirma ele em seu Plano de Desenvolvimento para a Construção do Mundo Histórico nas Ciências do Espírito:

O nexo da vivência em sua realidade concreta repousa na categoria do significado. Esta é a unidade que toma o decurso do vivido e do revivido em conjunto na lembrança, embora o significado do mesmo não consista em um ponto de unidade que repouse para além da vivência, senão que esse significado está constitutivamente contido nessas vivências, como em seu respectivo nexo.12

Conforme já vimos, a vivência é sua própria prova e isto não atinge somente os processos intelectuais da concepção do objeto, como também os processos afetivos envolvidos na atribuição de valor e os processos volitivos relacionados com o estabelecimento de fins, todos eles atuando aí, constitutivamente, em unidade de conjunto.

Sabemos ainda que a categoria do significado, que responde por essa unidade, não encontra seu apoio em algo transcendente à própria vivência, pois esta já contém em si todas as categorias da realidade objetiva. Para fechar o círculo, diríamos que a realidade objetiva está composta em sua totalidade pelo conteúdo vivo das vivências... Afinal, a vivência como que naturalmente se objetiva, isto é: "O conhecimento está aí, ele está ligado à vivência sem reflexão. Ele não tem nenhuma outra origem e fundamento que não seja a própria vivência".13 Apoiados nessas considerações, reiteramos a afirmação de Hans Georg Gadamer de que a "vivência tem uma estrutura hermenêutica" e que, em função disso, "ela se auto-interpreta".14

Dizer que "a vivência é sua própria prova", que "ela contém todas as categorias da realidade objetiva", que "ela naturalmente se objetiva", que "ela tem uma estrutura hermenêutica" e que assim sendo "se auto-interpreta" significa afirmar uma e mesma coisa, isto é, que vivência é não apenas o seu próprio critério de verdade, mas, como tal, a medida de todas as coisas, pois ao ser tecida em meio a uma atmosfera em que valores, significados, expressões, idéias e ideais são apreciados em comum, encontra-se como que atrelada a uma origem extra-individual. E essa origem lhe dá foros de objetividade, tornando-a a menor, mas em hipótese alguma a menos importante, célula viva do mundo histórico-social. Esse pano de fundo extra-individual da vivência encontra-se claramente descrito por Dilthey em A Construção do Mundo Histórico nas Ciências do Espírito:

Cada palavra, cada frase, cada gesto ou expressão de cortesia, cada obra de arte e cada feito histórico é somente compreensível porque há um fundo comum que une a pessoa que se manifesta com a pessoa que entende; o ser singular vivencia, pensa, age, sempre em uma esfera comum e somente nela se entende. Tudo que se compreende traz em si, por assim dizer, o marco do que é conhecido a partir de tal comunhão. Nós vivemos nessa atmosfera, ela nos envolve continuamente. Nós somos mergulhados nela. Nesse mundo histórico e compreensível estamos por toda parte em casa, compreendemos o sentido e o significado de tudo, nós próprios somos tecidos nessa coisas comuns.15

Se a vivência encontra-se por constituição atrelada a esse "meio das coisas comuns", não nos é difícil compreender que a possibilidade de a vivência expressar-se objetivamente lhe seja imanente. Isto é o que podemos depreender da seguinte afirmação de Dilthey incluída em seus "Fragmentos sobre Poética" (l909/8): "A vivência contém uma expressão. Esta representa-a em sua plenitude".16 Para não deixar dúvidas sobre essa possibilidade imanente de a vivência expressar-se objetivamente, o próprio autor atrela-a à própria teleologia subjetiva de nosso nexo psíquico estrutural. De fato, para ele, a teleologia imanente do nexo estrutural de nossos sentimentos encontra a sua perfeição na criação de formações objetivas.17

Ao que tudo indica, é em meio a essa atmosfera, comungada por todos os indivíduos que a compõem, que pensamos, sentimos, queremos, decidimos e agimos em nossa singularidade, mas o que lutamos por conseguir, o conteúdo de nossas vivências, que formam o nosso nexo psíquico adquirido em sua função reguladora de nosso agir, é um assunto provido pelo co-vivenciar das coisas comuns, isto é, extra-individualmente. Ora, é nessa atmosfera que buscamos o nosso aperfeiçoamento e desenvolvimento porque ela constitui o nosso verdadeiro hábitat, o único capaz de responder às necessidades de nossa estrutura psíquica teleologicamente organizada.

Assim alicerçados, torna-se mais fácil compreender a "relação especial" atribuída por Dilthey entre expressão, vida e compreensão: "Inteiramente diferente a expressão da vivência! Existe uma relação especial entre ela, a vida de onde ela provém e a compreensão que ela obtém. A saber, a expressão pode conter mais do nexo psíquico do que cada introspecção pode descobrir".18 De que "relação especial" então se trata?

Trata-se de uma relação apoiada na força catalisadora do pano de fundo constitutivo da vivência que, ao atuar como um fator extra-individual, garante objetividade a suas expressões, oferecendo-nos, por acréscimo, a possibilidade de compreendê-las. Isto porque o significado que os objetos e as pessoas adquirem para nós, em meio a essa esfera das coisas concebidas, apreciadas e valorizadas em comum, parece ser o único apoio sólido capaz de sustentar as raízes da objetividade das formas de expressão da vivência, responsável direta pela construção do mundo histórico, e conseqüentemente de sua compreensão como tarefa basilar das "ciências do espírito".

Vivência parece ser o verdadeiro ponto médio entre o geral e o individual, o universal e o singular, o ideal e o real, uma vez que, por constituição, carrega em si uma consciência eficaz e por isso consoladora e protetora de sua origem extra-individual, isto é, na "esfera das coisas comuns" a que pertence e que em certo sentido também lhe pertence. Se esse fundo comum também lhe pertence é porque os indivíduos, na singularidade de suas vivências, co-experimentam valores, objetivos, expressões, significados, crenças e, assim atuando, como que co-participam da criação ou construção desse todo a que pertencem e que lhes pertence também.

Já vimos, em seu Plano de Desenvolvimento para a Construção do Mundo Histórico nas Ciências do Espírito, que o nexo da vivência, em sua realidade concreta, repousa na categoria do significado, e que o significado não repousa em nenhum ponto fora da vivência, mas se encontra constitutivamente contido nela, ou melhor dizendo, em seu nexo.19

É o próprio Dilthey quem no referido plano nos garante que "... o significado exprime nada mais que integração num todo...".20 Então, dizer que o nexo da vivência repousa na categoria do significado é o mesmo que dizer que a relação parte-todo já está contida na vivência e a fundamenta, aliás, constitui o seu próprio nexo. E o autor acrescenta:

Toda vida tem seu próprio sentido. Ele se encontra em um nexo de significado, no qual todo presente passível de lembrança possui um valor próprio, portanto, possui, simultaneamente, no nexo da lembrança, uma relação com o significado do todo. Este sentido da existência individual é inteiramente singular, é irredutível ao conhecimento e representa seu modo, como uma mônada de Leibnitz, o universo histórico.21

De fato, o nexo da vivência parece traduzir-se completamente na relação parte-todo, relação esta que conta com o apoio do significado que a parte tem para o todo e vice-versa. Ora, isto significa dizer que esse universo se apóia inteiramente nas relações de significado entre o todo e as partes, entre o geral e o singular, entre o reino da uniformidade e o da individuação, relações estas que preparam o quadro fundamental do procedimento hermenêutico. Este, desenvolvido inicialmente em campos mais restritos como o da teologia, jurisprudência e filologia, passou a ser - graças ao esforço de Dilthey, no sentido de fundamentar as "ciências do espírito" com total independência em relação às ciências da natureza - aplicado ao campo mais amplo da vida em sua totalidade.

A publicação em l960 da obra de Hans Georg Gadamer Verdade e Método, Fundamento de uma Hermenêutica Filosófica (l960) despertou grande interesse em todo mundo pelos problemas da hermenêutica, tornando-a um conceito de moda, fato este que teve suas repercussões sobre o recente voltar das atenções para a filosofia de Dilthey. E isto acontece como resultado de um reconhecimento sempre crescente dos filósofos da atualidade no sentido de fazer justiça àquele que foi, em seu tempo, um dos fundadores da hermenêutica.

Otto Friedrich Bollnow pôde comprovar esse reconhecimento geral. Afirma ele, no primeiro volume de seus "Estudos sobre Hermenêutica", de l982:

Hoje o conceito de hermenêutica, desenvolvido como procedimento das ciências histórico-filológicas, e já de longa data esquecido, voltou a ser usado. Por causa disso, pode-se compreender a filosofia de vida de Dilthey também como o esforço de fundamentação de uma "filosofia hermenêutica" ou uma "hermenêutica filosófica.22

A seu ver a posição histórico-filosófica de Dilthey pode ser melhor caracterizada como a de fundador da "hermenêutica filosófica".23

Dilthey aponta com clareza o processo de dissolução das bases teóricas das crenças práticas: as ciências positivas desfizeram as pressuposições que sustentavam a crença religiosa e as convicções filosóficas dos séculos anteriores. A realidade, dada com suas qualidades sensíveis, mostra-se como fenômeno do desconhecido. O maior trabalho da filosofia do século passado, a análise da consciência e do conhecimento, contribuiu de forma mais efetiva nesse trabalho de destruição. Espaço, tempo, causalidade, a própria realidade de um mundo exterior foram submetidos à dúvida. A consciência histórica dá provas cada vez mais claras da relatividade de toda doutrina metafísica ou religiosa, enfim, de toda convicção histórica.24

Auto reflexão e a necessidade primordial de segurança prática

A velha filosofia prática está morta, e aos olhos de Dilthey cumpre recriá-la, pois uma filosofia que não forneça regras para a ação prática, uma especulação sobre o mundo que não inclua uma visão de nossa vida, nem mesmo um comando para sua conduta, é inteiramente insatisfatória. Só a filosofia prática, cheia de vida, é verdadeiramente ampla. Toda ciência teórica contém os pressupostos ou princípios necessários à colimação de determinados fins, reputados como valiosos. A determinação daquilo que, na vida, possui significado e valor constitui a tarefa da filosofia prática. O objeto desta consiste, pois, nos mais elevados princípios, por meio dos quais se fixam os caminhos e se estabelecem os fins da ação prática.25 O balanço parte-todo, equilibrado hermeneuticamente pela categoria do significado, aponta insistentemente para o cumprimento daquela exigência fundamental da natureza humana, a saber, a de encontrar segurança e orientação práticas para a ação.

A filosofia, erigida à categoria de filosofia prática, deve necessariamente permitir extrair de seus conhecimentos teóricos princípios práticos reguladores não só da vida de seres singulares, assim como da sociedade como um todo. Cumpre-lhe, portanto, resgatar a soberania do espírito totalmente, aviltada pela autoridade onipotente do pensamento científico, em sua ânsia incontrolável de conhecer e dominar o mundo. Então, se cabe à filosofia oferecer fundamentação, esta não é apenas do conhecimento teórico, mas da ação humana prática. Ainda melhor, muito pelo contrário, o referido fundamento teórico para ser válido deve estar inteiramente subordinado aos interesses do agir humano em sua sede original de segurança prática. Só uma fundamentação com tais requisitos básicos poderia ousar alterar a composição da atmosfera caótica da cultura da época, tão penosamente viciada naquela separação entre o pensar e o agir, entre teoria e prática, entre conhecimento e ação, entre crenças teóricas e práticas, entre soberania do conhecimento e do espírito, entre ciências particulares e filosofia, natureza e histórica, vivência e compreensão..., separações estas fatalmente nefastas aos propósitos de uma vida humana saudável, pelo menos dentro dos limites do cenário da "filosofia da vida".

A essa fundamentação aparentemente mágica do pensar e do agir da teoria e da prática... Dilthey atribui o nome de "auto-reflexão". Tomemos suas próprias palavras em seu ensaio "Vista Geral de Meu Sistema" (1911):

A fundamentação da filosofia não é apenas a do conhecimento teórico: em filosofia trata-se, pois, de uma elevação do espírito a sua autonomia: esta consuma-se não só por meio de conhecimento válido universalmente como por meio da determinação universal de valores e regras do agir teleológico. Uma fundamentação que abrange esses diferentes campos, como teoria do conhecimento, lógica e teoria do método da compreensão do real, assim como essência das próprias teorias sobre determinação de valores e atos de acordo com fins, pode ser designada como auto-reflexão.26

Essa afirmação, tomada em primeiro plano, nos dá a impressão de que a fundamentação oferecida pela filosofia é dupla, isto é, deve incluir um apoio universal não só para o conhecimento como para a determinação de valores e estabelecimento de fins para a ação. De um lado, então, um fundamento teórico, e de outro, um fundamento prático. Todavia, se ultrapassarmos os limites de um plano em direção ao outro podemos perceber que o que parecia ser duplo encontra-se originalmente apoiado em uma unidade.

Em A Construção do Mundo Histórico nas Ciências do Espírito, Dilthey afirma com clareza: "A célula original do mundo histórico é a vivência, na qual o sujeito se encontra em interação recíproca de vida com seu meio. Este meio atua sobre o sujeito e recebe efeitos dele".27 Ora, essa interação recíproca do sujeito com o meio parece ser o fato primeiro, a categoria fundamental da realidade humana histórico-social. O conhecimento está, ao que tudo indica, relegado a uma posição derivada, secundária por origem, pois prende-se ao processo em virtude do qual se mantém e se desenvolve a própria vida. Uma conhecida frase do Tratado da Realidade (1890) não nos permite, como já vimos, ter qualquer dúvida a esse respeito: "Os pressupostos fundamentais do conhecimento estão dados na vida e o pensamento não pode conceber por trás deles".28

Com esse princípio metodológico fundamental, isto é, de que "o pensamento não pode ir além da própria vida", Dilthey está pretendendo alcançar um alvo mais distante, isto é, a crítica à metafísica com sua vã pretensão de encontrar um apoio transcendentalmente seguro e sólido para o conhecimento. Para isso faz residir na vida, por meio de sua expressão microscópica, a vivência, todas as categorias da realidade objetiva. E, assim, a vivência pode ser a sua própria prova, pois ela traz em si o seu próprio critério de verdade. É o que podemos apreender da seguinte afirmação do autor, incluída em seu "Esboço de Berlim" (1893):

Como a origem do juízo e do conhecimento está na vida, assim também o seu fim está nela mesma. A vida é, de acordo com sua própria estrutura, através do aumento da consciência por sobre os objetos exteriores, de acordo com a sua natureza, com o seu modo de operar os meios, de provocá-los ou afastá-los, teleologicamente condicionada. Ela é, por outro lado, condicionada pelo aumento de reflexão sobre valores e os fins que surgem na percepção interna.29

Não estamos mais diante daquele clima da catástrofe iminente, descrito por Dilthey como próprio da cultura de sua época.

A tarefa de fundamentar a filosofia contemporânea por meio da auto-reflexão do homem e da reflexão da sociedade sobre si mesma - tarefa esta que se efetiva na transposição dos dualismos tão nefastos à compreensão da vida em seu nexo estrutural ou em sua unidade fundamental - tem necessariamente como ponto de partida a consciência da própria vida. Poderíamos perguntar, todavia, de onde essa "atitude consciente diante da vida" extrai a sua força fundamental de unidade com capacidade para nos oferecer orientação consciente ante as diversidades, oposições e contradições que povoam a vida humana histórica em sua profundidade enigmática? Ou, de que modo uma atitude consciente perante a vida pode ultrapassar todos os problemas particulares, além dos meios e fins do conhecimento particular? Ou ainda, como a consciência da própria vida pode nos conduzir ao reino do universal? A solução desta questão parece ligar-se a uma resposta de Dilthey a uma pergunta formulada por ele próprio. O autor, referindo-se àquela ameaça de catástrofe iminente dentro da cultura de sua época, propõe:

"A questão é, pois, principalmente, quais as forças que podem ser mobilizadas para dominar essa influência. Pois bem, meu livro Introdução às Ciências do Espírito resultou da convicção de que a autonomia das "ciências do espírito" e do conhecimento da realidade histórica, contido nelas, poderia contribuir para isto. Expresso de outro modo: o mundo histórico conduz, por meio da auto-reflexão, a uma vitalidade de vitoriosa espontaneidade, a um nexo não passível de formulação pelo pensamento, mas analiticamente apresentável na vida individual e na interação; finalmente, leva a um nexo mais elevado, de tipo especial que transcende os recursos científico-naturais; este nexo precisa ser salientado e proclamado com vigor se é que nos interessa o reavivar de sua importância superior, consciente do próprio valor.30

O exercício da "auto-reflexão" permite-nos, então, intuir nossa comunhão com a fonte de toda vitalidade humana, isto é, estimula e alimenta a volta da consciência sobre si mesma e com isto reforça, fortalecendo o nexo entre a vida histórica individual e a energia vital de extraordinária espontaneidade. As qualidades características dessa vitalidade ou desse nexo: não é apreensível pelo pensamento, mas pode ser intuído na vida singular, na interação entre os indivíduos e, finalmente, uma vez depurado de seus contornos históricos, o referido nexo revela seu tipo especial não acessível aos recursos científicos naturais. Estes, embora muito precisos e rigorosos, mostram-se inteiramente insensíveis e impotentes para captar uma vitalidade tão extraordinariamente espontânea ou um nexo tão especial na sua composição. Se não nos cabe pensar nele ou provar a sua existência com o apoio de recursos científico-naturais, cumpre-nos, sim, proclamá-lo vigorosamente, reavivá-lo em nossa fé em sua importância superior. Como estamos percebendo, a "auto-reflexão" nos convida a reforçar nossa comunhão com a fonte original de energia vital. Essa fonte, ao alimentar os nexos vitais singulares, parece elevá-los à categoria de nexos especiais inteiramente indiferentes à apreensão limitada dos recursos meramente naturais. A especialidade desses nexos parece dever-se ao fato de eles expressarem continuamente a religação parte-todo.

Nossa vida psíquica, em sua totalidade de funções, estará instrumentalmente sempre voltada para exteriorizar a ligação das partes - que cada um de nós representa - com o todo que nos envolve e nos alimenta com sua energia infinita, ligação esta que simboliza o estado mais profundo da consciência de nossa própria vida e, neste sentido, a condição mais primitiva de possibilidade da compreensão humana. Assim, já em sua origem tão fundamentalmente apoiada, pode a atitude humana diante da vida tornar a "auto-reflexão do homem" e a "reflexão da sociedade sobre si mesma" de fato efetivas, cumprindo à risca a tarefa basilar de filosofia contemporânea. "Auto-reflexão" parece ser, então, a denominação escolhida por Dilthey como símbolo desse retroceder consciente à fonte original de energia vital do mundo humano histórico-social.

A auto-reflexão e a tarefa de filosofia contemporânea

Dilthey, ao seguir o caminho de uma "crítica da razão histórica" ou da "descrição da vida", tem como objetivo fundamentar teoricamente o conhecimento da realidade histórico-social, erigindo-o assim à categoria de objeto de estudo autônomo das "ciências do espírito". Chegou mesmo a atribuir o nome de "auto-reflexão epistemológica" a essa tentativa de analisar criticamente as condições "teóricas" do conhecimento histórico. Suas palavras na Introdução às Ciências do Espírito (1883) parecem não nos permitir qualquer equívoco a esse respeito:

O conhecimento do todo da realidade histórico-social ao encontro do qual nós nos sentimos empurrados, por ser o problema mais geral e último das ciências do espírito, realiza-se sucessivamente em um nexo de verdades que se apóiam na auto-reflexão epistemológica, nexo no qual as teorias particulares da realidade social se erguem sobre a teoria do homem. Estas, todavia, serão empregadas em uma verdadeira ciência histórica progressiva, para esclarecer sempre mais a realidade histórica ligada à ação recíproca dos indivíduos. Nesse nexo de verdades reconhecer-se-á a relação entre fato, lei e regra por meio da auto-reflexão. Dele resulta também quão longe nós ainda estamos de uma possibilidade previsível de uma teoria geral da evolução histórica, se é que podemos falar de uma tal teoria por mais modesto que seja o seu sentido. História universal, na medida em que não fosse algo sobre-humano, constituiria a conclusão desse todo das ciências do espírito.31

Cabe-nos inicialmente perguntar que "nexo de verdades" é este que oferece apoio ao conhecimento sucessivo do todo da realidade histórico-social e que encontra seu próprio apoio na "auto-reflexão epistemológica"? Ora, se o conhecimento da realidade histórico-social apóia-se em um "nexo de verdades" que, por sua vez, encontra sua fundamentação na "auto-reflexão epistemológica", então estamos diante de um conhecimento que se autofundamenta, isto é, ele se apóia no processo circular de consciência diante da própria vida, que por sua vez nos conduz à consciência da unidade original. Na verdade, ele já nasce válido e objetivo e por isto não precisa de qualquer fundamentação. Ele é a sua própria prova. Prová-lo é uma redundância, é uma volta sobre ele mesmo. Isto porque o ato de conhecer resume-se na exteriorização de algo desde sempre conhecido. E auto-reflexão epistemológica é apenas o redescobrir contínuo do "nexo de verdades" aí desde sempre implícito, ou o efetivar da religação viva das partes com o todo, ou o restabelecer, o reatar do vínculo entre energia original e vitalidade extraordinariamente espontânea das criações humanas históricas, ou melhor ainda, o reviver da experiência da unidade original do homem com o absoluto, da individualidade com a totalidade, da razão com a vida, da ciência com a intuição. Como sabemos, todos esses contrários encontram-se como que indissoluvelmente unidos na cédula original do mundo histórico-social, isto é, na vivência.

O lacre que garante a inviolabilidade desse entrelaçamento: energia original e "vitalidade extraordinariamente espontânea" é a "consciência da própria vida" ou "atitude consciente diante da vida". A autoconsciência confere veracidade e validade ao pensamento e às ações humanas resultantes do balanço equilibrado dos valores experimentados pelos sentimentos, e da determinação de fins, pela vontade. Se isto acontece é porque, como vimos, todo o pensar e o agir conscientes encontram-se como que teleologicamente voltados para restabelecer continuamente a ligação das partes com o todo e extraem daí, e somente daí, o seu significado de verdade, o seu valor. Afinal, como vimos, a categoria do significado como fundamental dentro do mundo histórico-social, caracteriza-se por ser nada além do que "... a integração num todo; neste todo porém o enigma da vida (...) é eliminado...",32 conforme o autor declara em seu Plano de Desenvolvimento para a Construção do Mundo Histórico nas Ciências do Espírito. A auto-reflexão progressiva dessa "realidade histórica", advinda das "ações recíprocas entre os indivíduos", proporcionar-nos-á lentamente o desvelar do caráter enigmático da vida humana por meio da apreensão gradativa do nexo de verdades. De fato, auto-reflexão significa propriamente a elevação do espírito à consciência de si mesmo, isto é, sobre as suas próprias criações históricas, procurando desvendar no interior de cada uma delas a força sempre presente de sua absoluta soberania condutora.

As palavras do autor em a "Vista Geral do Meu Sistema" (1911) parecem ser bastante claras a esse respeito: "O método dessa auto-reflexão é a análise que disseca todos os produtos e funções da Humanidade, desde as ciências até a vida política, para procurar na consciência as condições não mais redutíveis dela própria".33 Ora, as condições não mais passíveis de redução, portanto, as absolutamente simples, primitivas, genuínas e legítimas da consciência, isto é, as verdadeiramente puras e autênticas, para além das quais não nos é possível regredir, só podem ser descobertas pelo curvar do espírito sobre si mesmo e suas criações, naquele seu esforço de auto-reflexão. Após "dissecar todos os produtos e funções da Humanidade" historicamente condicionados, esse procedimento auto-reflexivo do espírito contempla-nos com o vivenciar de momentos de profunda unidade entre consciência finita e soberania do espírito infinito. Só aqui parecem cravar-se as condições verdadeiramente puras e autênticas da consciência, já que são as mais simples e primitivas, por isso mesmo as absolutamente legítimas.

Fundamentar o conhecimento dessas ciências é a grande tarefa da "filosofia da vida". Trabalho nada contundente se levarmos em consideração que vida e espírito penetram as formas objetivas das vivências em seu trabalho de tecer a realidade histórico-social, transformando-a na "grande realidade exterior do espírito". Efetiva-se assim a síntese que o espírito representa: o exterior revela o interior, a natureza o espírito, o ato a potência, a ação a energia original, a subjetividade a objetividade, a vivência a vida universal... E o espírito garante sem sombra de dúvida a possibilidade de compreensão do mundo histórico-social, mundo este que ao ser tecido conjuntamente com essa energia infinita adquire foros de universalidade em sua própria origem. É como se manifestando o interior pelo exterior, fosse dado corpo ao espírito, e revestindo de realidade exterior aquilo que era apenas uma energia em potencial obtivéssemos a garantia de uma forma lógica de conhecê-lo, pensá-lo ou compreendê-lo.

É justamente neste ponto que se encaixa o trabalho efetivo das "ciências do espírito" em busca da sistematização do conhecimento da grande "realidade exterior do espírito". Caberá às "ciências do espírito" "... antes de mais nada e principalmente retraduzir a imensa e extensa exteriorização da realidade humana histórico-social na vitalidade espiritual de onde ela proveio".34 Ao que tudo indica, esse procedimento de retradução adquire sua validade por constituir apenas a outra face do agir espiritual. É justamente pelo fato de o próprio espírito exteriorizar-se em obras ou criações que ele é capaz de retroceder ás origens, retraduzir, interiorizar sua criação, compreendê-la portanto. Interior e exterior, tradução e retradução, vivência e compreensão parecem apenas duas perspectivas, dois momentos da vida do espírito. Ter consciência viva dessa dupla face do espírito é o mesmo que reforçar o nosso nexo vital ou a nossa unidade com essa energia espiritual. Como sabemos, o nexo de nossa própria consciência é para o autor a condição mais geral de vida. E como tal, é condição fundamental da auto-reflexão erigida pelo autor em princípio basilar da "filosofia da vida".

Se a consciência tem condições de voltar-se sobre si mesma, de conhecer-se a si mesma, ao fazê-lo, ao voltar-se sobre si mesma, ela se conhece como consciência, o que significa dizer como nexo; como unidade entre espírito universal e história, vida e vivência... E Dilthey continua em sua obra A Construção do Mundo Histórico nas Ciências do Espírito (l9l0) expondo com clareza seu pensamento: "É a direção para a auto-reflexão, é o caminho da compreensão do exterior para o interior. Essa tendência utiliza cada exteriorização da vida para a compreensão do interior, de onde ela resultou".35 Ora, essa verdadeira síntese que constitui a essência do espírito e que nos permite captá-lo na história como potência e ato, energia e criação, interior e exterior, princípio e ação, parece aproximar-nos inevitavelmente do pensamento hegeliano em sua caracterização da história como aquele movimento em que o "espírito em si" se exterioriza em obras culturais, sendo por isso capaz de interiorizar a sua criação, isto é, voltá-la "para si", compreendê-la como realização sua.

Esse verdadeiro toque de afinidade com o conceito hegeliano de espírito parece encontrar respaldo em muitas passagens da obra diltheyana, em que o autor faz referências a Hegel quase como um ponto de partida necessário para justificar certos aspectos característicos de sua "filosofia da vida", entre eles especialmente o seu conceito de espírito objetivo.36

A título de ilustração poderíamos, ainda que de modo superficial, evocar o conceito de Hegel de história como o movimento pelo qual o espírito se exterioriza, se manifesta, produzindo as obras culturais, e reconhecendo-se como seu criador, interioriza-as, compreende-as. Nesta exata medida, história é reflexão e sua tarefa completar-se-á quando o espírito dobrar-se totalmente sobre si mesmo, interiorizando, compreendendo completamente a sua trajetória histórica para pairar absolutamente, agora já não mais dentro dos domínios da história, mas sim da filosofia. Com efeito, o caminho da objetivação da vida que torna possível o seu reverso, isto é, o da "auto-reflexão" e com ele o da "filosofia da filosofia", forma com eles o duplo movimento de ida e volta, isto é, da vivência e da compreensão que sustenta toda a construção diltheyana do mundo histórico, impondo condições à possibilidade de sua compreensão.

Nosso interior animado pela ligação original com a energia vital oferece-nos o único ponto de partida para compreendermos a história e o poder que o conceito de progresso tem para o homem. Na verdade, progresso é sinônimo da manifestação, do desvelar lento de um trabalho humano de vida feliz, na consciência da unidade com a energia original. Não se trata, é bem verdade, de um objetivo, mas de um caminhar eterno da humanidade. Por isso não é uma tarefa do homem particular e sim do homem histórico. Este, ao agir, deve manifestar a sua religação com o todo, com a unidade original. Só assim cada um estará participando ativamente daquele trabalho de vida histórico da Humanidade e, só assim a vida adquirirá significado.

Também o "princípio da fenomenalidade", conhecido como ponto de partida da "filosofia da vida", "da realidade" ou "da experiência", ou ainda empiria, em oposição a empirismo, parece extrair toda a sua força "empírica" dessa experiência humana da unidade original. Para tanto, cumpre-nos relembrar o que ele nos prescreve em seu ensaio "Filosofia da Experiência Empiria, não Empirismo" (anterior a l880):

O real, que como coisa ou objeto se distingue de mim mesmo, me é dado somente na minha consciência, naquela do meu eu. O real é aquilo que atua em minha totalidade psíquica. Todos os fatos e todas as verdades são dados para mim em mim mesmo. A minha consciência é o único lugar de sua existência, atos psíquicos constituem o único elemento do qual eles são tecidos. Eles não são nada além do que algo espiritual. Todavia, esse princípio precisa ser compreendido nos seus verdadeiros limites.37

Sabemos que para compreender esse princípio dentro de seus verdadeiros limites a condição fundamental nos é dada, conforme já vimos, pelo sinal vermelho aceso ao fenomenalismo, segundo Dilthey, estilizado na conhecida frase de Schopenhauer: "O real é minha repre-sentação". Sabemos que as vivências constituem o critério responsável pela triagem dos fatos da consciência, e conseqüentemente daquele material responsável pela caracterização do real. Vivência é aquela experiência viva mais distintivamente humana, pois o seu conteúdo é formado pela atuação da totalidade de nossas forças psíquicas. Estas são como que acionadas pela resistência exercida por um mundo exterior sobre os movimentos de nosso corpo, sobre o impulso de minha vontade, respondendo assim pelo surgimento dos fatos da consciência. Estes, por sua vez, encontram-se totalmente submetidos às condições "reais" ou verdadeiras ou "vivas" da consciência, isto é, às condições "históricas".

Não podemos nos esquecer que é papel da auto-reflexão desenvolver a análise de modo tão radical a ponto de dissecar todos os produtos e funções da Humanidade desde as ciências até a vida política, tendo em vista captar na consciência "as condições não mais redutíveis da consciência".38 Trata-se, na verdade, de buscar as condições "históricas" do desenvolvimento de uma consciência que evolui de fato historicamente, mas a partir da sucessão de momentos sintáticos entre vida e história, todo e partes. Aqui parecem enraizar-se as condições "reais" ou "vivas" da consciência histórica. É justamente nesse nexo, nessa unidade, nessa identidade entre energia espiritual e suas expressões objetivas que podemos captar essas "condições" ou "pressuposições" da consciência que não são mais redutíveis. Referimo-nos à consciência da unidade original, a única capaz de garantir para todo o sempre as condições verdadeiramente "históricas" da consciência... tornando-a capaz de compreender o desvelar lento e progressivo da energia infinita do espírito... E aqui parece alicerçar-se também mais fundamentalmente o conhecido "princípio da fenomenalidade", como o mais sólido ponto de partida da "filosofia da experiência" ou "empiria em oposição ao empirismo".

De fato, o real não é produto de minha representação, mas da vivência que configura a manifestação histórica dessa comunhão humana com a fonte da energia espiritual, ou com a vida, o que faz com que o autor, uma vez tão bem alicerçado, passe daí para a frente a sustentar a força exclusivamente empírica da identificação entre realidade e experiência, expressa na denominação atribuída à sua própria filosofia, isto é, "filosofia da realidade ou da experiência". Da mesma forma justifica-se a mais harmoniosa identificação entre o sujeito e o objeto. E essa harmonia tem a sua razão de ser porque, ao que tudo indica, não há o perigo da prática do reducionismo, nem para o lado do sujeito nem para o do objeto. Isto porque sujeito e objeto estão amalgamados pelos poderes absolutos da verdade do espírito, que penetra a ambos indistintamente.

Parece consolidar-se a tarefa de filosofia contemporânea, qual seja: "auto-reflexão do homem e reflexão da sociedade sobre si mesma".39 A referida tarefa encontra-se atrelada a um procedimento verdadeiramente hermenêutico que conta, por sua vez, com a força da lógica interior à própria vida, lógica esta que se expressa dialeticamente na fórmula hermenêutica: Vida = todo + vida = parte. De fato, Dilthey aponta em seu Plano de Desenvolvimento para a Construção do Mundo Histórico nas Ciências do Espírito, entre os predicados da vida, a "lógica interna" e a "dialética interna".40 E é justamente no balanço dialético dessa lógica interna que a categoria significado se alicerça. E, como sabemos, "... significado nada mais exprime do que a integração num todo; neste todo, porém, o enigma da vida (...) é eliminado...".41 Sim, a categoria do significado aponta a necessidade da religação da parte ao todo e assim restabelecer a unidade ou compreender a vida. Poderíamos dizer que "vida = todo" é a direção eterna da "vida = parte".

Finalmente, acreditamos que, ao salientar a importância da sentença hermenêutica para compreensão da "filosofia da vida" buscamos, de algum modo, apreender as raízes da própria hermenêutica diltheyana. Baseados nesse procedimento julgamos ser possível esclarecer o que Jürgen Habermas chama de inconseqüência do pensamento diltheyano. Esta prender-se-ia ao fato de Dilthey buscar uma elucidação hermenêutica do mundo histórico e ao mesmo tempo querer apreendê-lo positivamente de acordo com o modelo do ideal de objetividade científico-natural.42 Nós seríamos ainda mais radicais do que Habermas em seu julgamento, pois poderíamos detectar nessa submissão diltheyana ao ideal de objetividade das ciências naturais uma monstruosa contradição com o sentido fundamental de sua peregrinação filosófica como um todo. Se ele empenhou todo o seu esforço, se ele dedicou toda a sua vida, como confessa com freqüência, tendo em vista fundamentar as "ciências do espírito" independentemente dos métodos e princípios das ciências naturais, como poderia deixar transparecer tamanha inconsistência de pensamento?

Esse verdadeiro "impasse" ou "inconseqüência", para usar as palavras de Habermas, parece encontrar a nosso ver uma solução bastante plausível, à medida que nos permitimos entrever que a força que sustenta o arcabouço teórico do pensamento de Dilthey provém das raízes mais subterrâneas da intuição, da crença do autor na unidade original entre parte-todo, humanidade-divindade, história-vida, singular-universal, consciência histórica e espírito soberano. Aí sim parece localizar-se toda a energia de sua hermenêutica filosófica, e conseqüentemente da possibilidade de compreensão da realidade humana histórico-social.

Se o autor pode "descrever a vida" em plena "objetividade" de pensamento é porque a referida objetividade está garantida pela universalidade de uma compreensão anterior da vida, compreensão esta fundada na fé. Ao que tudo indica, o esclarecimento hermenêutico do mundo histórico pode ser plenamente consoante com a exigência de objetividade do pensamento diltheyano, desde que a referida objetividade floresça não do modelo científico natural, mas da universalidade da fé inerente à experiência humana da unidade original.

É preciso perguntar, contudo, se - a partir de tão grande confiança depositada no papel das ciências do espírito - semelhante tarefa não estaria situada em nível muito elevado, sem preocupação maior com os limites da compreensão. O próprio Dilthey chamou a atenção, em diferentes pontos de sua obra, para tais limites. De modo drástico, fala ele em sua última aula a respeito das dificuldades de compreensão dentro dos contornos da vida cotidiana: entre os sexos, em relação com as crianças, mas também em relação às convenções, fingimento e mentira, além de diferentes reações emocionais que influenciam nossas relações com outros seres humanos.43

Exatamente esse último ponto é também importante na análise diltheyana das "relações vitais" que se estabelecem entre o indivíduo e seu meio:

não há nenhum ser humano ou qualquer coisa que fossem para mim, apenas objeto e não pressão ou estímulo, objetivo a ser alcançado ou compromisso da vontade e que não representassem importância ou exigência de respeito e atração interior ou obstáculo, distância e estranhamento.44

Dilthey não estaria mencionando aqui aspectos metodológicos, mas antes, fenomenológicos das estruturas vitais cotidianas. Além dessas, encontramos reflexões no campo das questões psicológicas da compreensão do outro. A interpretação de expressões que nos causam estranhamento pode ser bastante diferenciada, dependendo do conhecimento do contexto ao qual uma tal expressão pertença, ou de acordo com o tipo de vida mental que sem qualquer reflexão as apóiam na maioria dos casos.

E os limites da nossa compreensão residem sempre ali onde não podemos mais compreender para além do contexto.45 Com isso evidencia-se o fenômeno do estranhamento como o verdadeiro limite da compreensão. Para Dilthey,

a tarefa de compreender seria impossível se as manifestações vitais nos fossem inteiramente estranhas e seria desnecessária se não existisse nas manifestações vitais algo estranho. O sentido da compreensão repousa entre esses dois pólos opostos. Ela é requerida onde existe algo estranho que a arte de compreensão deve apropriar-se.46

Um outro aspecto de limitação de nossa compreensão repousa na facticidade das estruturas vitais elementares, inteiramente impermeável à compreensão:

O ponto central de toda incompreensão são fertilização, nascimento, desenvolvimento e morte. O ser vivo sabe da morte e apesar disso não a pode compreender. A nós, que estamos vivos, nos é incompreensível a morte no primeiro momento em que a presenciamos, e aqui repousa acima de tudo nossa atitude em relação ao mundo como o outro, o estranho, o terrível.47

Em relação a todas essas indicações sobre os limites de nossa compreensão, Dilthey mantém-se firme na tarefa de alargá-los o máximo possível por meio da auto-reflexão. Assim, destaca os limites da compreensão para o trabalho de interpretação nas ciências do espírito, e salienta a tarefa de compreender como "processo intelectual de elevado esforço e enquanto tal uma atividade infinita".48 Mas ele assegura, como Schleiermacher, que a verdadeira vida das ciências do espírito, e com isso da própria auto-reflexão da sociedade, reside exatamente na tarefa infindável da compreensão.

1 Texto da conferência proferida no Simpósio "Limites da Compreensão" realizado no Centro Universitário de Witten, Alemanha em junho de 2000.
2 Professora da faculdade de Educação da USP.
3 Cf. "Grundgedanke meiner Philosophie", Gesammelte Schriften, VIII, p. 171. [ Links ]
4 Frithjof Rodi. "W. Dilthey, Um Filósofo Desconhecido", In: O Estado de S. Paulo, Suplemento Cultura, 13/11/1983. [ Links ]
5 Der Aufbau der Geschichtlichen Welt in die Geisteswissenschaften, Gesammelte Shriften, VII, p. 87. [ Links ]
6 Cf. Gesammelte Schriften, V, p. 131. [ Links ]
7 Idem, p. 136. Cf. também Helmut Johach, Handeln der Mensch und Objektiver Geist. Zur Theorie der Geistes und Sozialwissenschaften bei Wilhelm Dilthey, Verlag Anton Hain, Meisenheim am Glan, 1974, pp. 122-123. [ Links ]
8 Cf. Frithjof Rodi, "Dilthey's Concept of Structure within the Context of 19th century science and philosophy", in: Rudolf Makkreel and John Scanlon, Dilthey and Phenomenology, Center for Advanced (Editors), Reasearch in Phenomenology & University Press of America, Washington, D. C., 1987, p. 111. [ Links ]
9 Gesammelte Schriften, V, pp. 136 - 137. [ Links ]Cf. Georg Lukács Die Zerstörung der Vernunft Vol. II (Irrationalismus und Imperialismus), Darmstadt, Neuwied: Luchterhand, 1983, pp 100 - 123, [ Links ]onde o autor salienta a importância do conceito de vivência como marco central da "filosofia imperialista da vida" fundada por Dilthey.
10 Gesammelte Schriften, VII, p. 131. [ Links ]
11 Idem, p. 132
12 Gesammelte Schriften, VII, p. 237. [ Links ]
13 "Studien zur Grundlegung der Geisteswissenschaften", Gesammelte Schriften, VII, p. 18. [ Links ]
14 Cf. H. G. Gadamer, Wahrheit und Methode Grundzüge einer Philosophyschen Hermeneutik, 2ª. ed. Tübigen, 1965, pp. 286, 300 - 313. [ Links ]
15 Gesammelte Schriften, VII, pp. 146 - 147.
16 Gesammelte Schriften, VI, p. 137.
17 Cf. "Studien zur Grundlegung der Geisteswissenschaften", Gesammelte Schriften, VII, p. 57. [ Links ]
18 Gesammelte Schriften, VII, p. 206. Cf. também Manfred Sommer, "Leben aus Erlebnissen, Dilthey und Mach", in: E. W. Orth (editor). Dilthey und der Wandel des Philosophiebegriffs seit dem 19. Jahrshundert, Alber, Freiburg München, 1984, p. 61. [ Links ]
19 Gesammelte Schriften, VII, p. 237.
20 Idem, p. 230. Cf. também Gunter Scholtz, Zwischen Wissenschaftsanspruch und Orientierungsbedürfnis, Suhrkamp Taschenbuch Verlag, Frankfurt am Main, 1991, p. 266. [ Links ]
21 Idem, p. 199. Cf. também Frithjof Rodi, "Der Rhythmus des Lohens selbst, Hegel und Hölderling in der Sicht des Späten Dilthey", in: Reports on Philosophy, Jagiellonian University, Warsaw - Cracow, 1987, pp. 107 - 120. [ Links ]
22 Otto Friedrich Bollnow, Studien zur Hermeneutik, vol. I (Zur Philosophie der Geisteswissenschften), p. 195. [ Links ]Cf. também ders: Dilthey eine Einjührung in seine Philosophie, Novalis Verlag AG, Schaffausen, 1980, pp. 212 - 213. [ Links ]
23 Cf. Idem, cf. também Gunter Scholtz, "Was ist und seit wam gibt es 'hermeneutische Philosophie'?", in: F. Rodi (Hrsg.): Dilthey - Jahrbuch für Philosophie und Geschichte der Geisteswissenschaften, vol. 8 / 1993, Vandenhoeck & Ruprecht in Göttingen, p. 103. [ Links ]
24 Cf. Idem, p. 194. Cf. também Gunter Scholtz (para quem Dilthey, tido como primeiro clássico da filosofia hermenêutica, teria descoberto essa crise), Philosophie VII (Hermeneutische Philosophie), in: Historiches Wörterbuch der Philosophie. [ Links ]
25 Cf. Gesammelte Schriften, X, pp. 13 - 14.
26 Gesammelte Schriften, VIII, p. 179. Cf. também Manfred Riedel, "Hermeneutik und Erkeuntnis zum Verhältnis von theoretischem Wissen und praktischer Lebensgewissheit bei Wilhelm Dilthey, in: F. Rodi und H. U. Lessing (Hrsg.), Materialien Zur Philosophie W. Dilthey, Suhrkamp Frankfurt am Main, 1984., p. 381. [ Links ]
27 Gesammelte Schriften, VII, p. 161.
28 Gesammelte Schriften, V, p. 136.
29 Gesammelte Schriften, XIX, p. 320.
30 Briefwechsel Dilthey - Yorck, pp. 156 - 157. Grifo do autor.
31 Gesammelte Schriften, I, p. 95.
32 Gesammelte Schriften, VII, p. 230.
33 Gesammelte Schriften, VIII, p. 179.
34 Idem, pp. 119 - 120.
35 Idem, p. 82. Cf. também G. Pfafferott. "Die Bedeutung des Begriffs Selbstbesinnung bei Dilthey und Husserl", in: E. W. Orth (Hrsg.), Dilthey und die Philosophie der Gegenwart, Alber, München, Freiburg, 1985, pp. 351 - 380. [ Links ]
36 A esse respeito cf. Amaral, M. Nazaré C. P.. Dilthey: Conceito de Vida e Pedagogia. São Paulo:Ed. Perspectiva, EDUSP,, 1987. [ Links ]
37 Gesammelte Schriften, IX, p. 17Cf. também José Ortega y Gasset, Obras Completas, Revista de Occidente, Tomo VI, Madrid, pp. 192 - 193.
38 Cf. "Übersicht meines Systems", Gesammelte Schriften, VIII, p. 179.
39 Cf. "Berliner Entwurt", Gesammelte Schriften, XIX, p. 304.
40 Gesammelte Schriften, VII, p. 238.
41 Idem, p. 230.
42 Cf. Jürgen Habermas, Erkenntnis und Interesse, Frankfurt/ M. 1968, pp. 229 ss. [ Links ]
43 Cf. System der Philosophie in Grundzügen, Gesammelte Schriften, XX, p. 100.
44 Gesammelte Schriften, VII, p. 131.
45 Cf. Gesammelte Schriften, V, p. 277.
46 Gesammelte Schriften, VII, p. 225.
47 Gesammelte Schriften, VII, p. 80 ss; cf. também VIII, 143.
48 Gesammelte Schriften, VII, p. 277.

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