Antonio Negri: A Constituição do Comum
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Apresentada por ocasião do II Seminário Internacional – Capitalismo Cognitivo: ‘Economia do Conhecimento e a Constituição do Comum’ – 24 de outubro de 2005
Meu discurso esta tarde se delimitará, fundamentalmente, em torno de quatro pontos. O primeiro é a diferença que existe entre o moderno e o pós-moderno. O segundo é a relação que se estabiliza no pós-moderno – ou melhor, no altermoderno, e que se constitui como algo novo derivado destes dois conceitos – entre singularidade e comum, tentando explicar como a singularidade e o comum anunciam elementos diversos na multidão e que mudam dentro de uma dinâmica continuamente construtiva. Em terceiro lugar, muito brevemente, tentaremos ver algumas conseqüências políticas ligadas a esta relação. Finalmente, em quarto lugar, refletiremos sobre o conceito de modernidade, o conceito de pósmodernidade e o conceito, sobretudo, de altermodernidade e de quanto este último pode permitir ampliar o conceito de comum e recuperar uma série de tradições de luta, de pensamento e, sobretudo, de consistência biopolítica que nos possibilitará a força para avançar na transformação deste mundo e na construção da democracia.
Em relação ao primeiro ponto, começamos pela diferença entre moderno e pós-moderno. Hoje é muito difícil, quando se fala de Ciência Política, não recorrer a uma nova terminologia. Quando nos referimos à terminologia política do moderno, e quando digo moderno me refiro ao pensamento que se desenvolveu entre 1500 e 1900, nos encontramos sempre frente a conceitos que são polêmicos: soberania, Estado-Nação, imperialismo ou colonialismo, cidadania, sujeito político. Interpretados da maneira nos quais foram definidos hoje significam muito pouco. A soberania era um conceito que tinha seu próprio caráter absoluto. O Estado-Nação soberano era um Estado que se supunha uma independência quase absoluta, já que tinha a capacidade de fazer a guerra, de cunhar moeda de maneira independente ou de construir cultura de maneira isolada. Hoje todos estes elementos são cada vez menos importantes. Vivemos dentro de um mundo global, dentro de um mundo no qual, com todas as diferenças, os processos de unificação e homogeneização adquirem cada vez mais importância.
E, neste contexto, o que me interessa extrair é o fato de que o sujeito político é diferente, porque se transforma pelos menos segundo três elementos. Em primeiro lugar, o sujeito político é transformado e implicado por uma nova forma de conhecimento e pelo fato de estar inserido dentro de um processo de trabalho que é cada vez mais cooperativo, o que converte este sujeito em um trabalhador intelectual e cooperativo. Os processos de valorização da produção hoje são dominados por este tipo de trabalhador e não há valorização efetiva senão desta maneira. O segundo elemento que caracteriza a modificação do sujeito consiste no fato de que ele é colocado em uma nova temporalidade. A temporalidade que conhecemos (pelo menos em meu caso que já sou bastante velho, que vivi a época do trabalho fordista, do trabalho taylorista) era caracterizada por uma extensão temporal da jornada de trabalho: se entrava às seis e se saía às duas da fábrica, depois havia o turno das duas da tarde às dez da noite e outro das dez à seis da manhã. A jornada de trabalho, como a das cidades de minha infância próximas de Veneza, era caracterizada assim, a rotina da vida passava pelas horas dos turnos dos trabalhadores. Hoje tudo mudou totalmente. Vivemos em um tempo unificado, disperso, no qual a jornada de trabalho clássica não é medida da temporalidade, já que esta medida desapareceu ou se modificou completamente. Além disso, vivemos em uma situação na qual o espaço também se alterou completamente. O espaço do trabalho, da atividade, se converteu em um espaço de inter-relações contínuas, o que se supõe uma dimensão ontológica diferente.
Portanto, dizemos que hoje a vida de trabalho se modificou porque já não se trata somente de uma vida de trabalho dirigida por algum ciclo de tempo e de espaço da produção. É uma vida que é regulada, ordenada de alguma forma, por uma espécie de imersão em um fluxo contínuo que chamamos de biopolítico. Por que é biopolítico? Porque implica efetivamente a vida, envolve formas de vida que são conseqüentes uma as outras, que estão ligadas uma as outras; porque a estrutura social e política entra como elemento absolutamente fundamental na vida de cada pessoa; porque já não é possível distinguir, como se fazia na velha tradição marxista, o valor de uso e o valor de troca; porque estamos totalmente dentro da capitalização e, portanto, da exploração da vida. Não existe um espaço natural no qual se refugiar, talvez no Brasil, mas seria um caso único no mundo. Para todos os outros seres humanos existe essa imersão nesse regime da vida, ou melhor dizendo, essa subsunção da sociedade e da totalidade do trabalho dentro do capital. É nessa subsunção total na relação ao qual – e aqui é justamente de onde surge o problema – se trata de entender o que é hoje a vida e de perguntarmos se existe, todavia, a existência e se existe, todavia, a possibilidade de que a vida suceda de maneira diferente. Este é o grande problema que é colocado pela diferença das relações entre o moderno e o pós-moderno. O moderno era um mundo que herdamos e superamos. Estamos vivendo em outra situação. Estamos imersos em outra vida, em outra água. Este é o contexto no qual nossa problemática deve ser proposta.
Quais são as categorias que nos permitem fazer uma leitura desta nova realidade? Dizemos que são as categorias de multidão, comum e de singularidade. Quando falamos de multidão falamos de um conjunto, mais do que uma soma, de singularidade cooperantes. A multidão pode ser definida como o conjunto de singularidades cooperantes que se apresentam como uma rede, uma network, um conjunto que define as singularidades em suas relações umas com as outras. Este fato levanta problemas e é preciso esclarecer que são essas singularidades que se movem desta maneira e que se colocam nesta relação. A primeira característica que aparece vem definida pelo fato de que não estamos aqui diante de individualidade e sim diante de singularidades. Individualidade significa algo que está inserido em uma realidade substancial, algo que tem uma alma, uma consistência, por separação em relação à totalidade, em relação ao conjunto. É algo que tem uma potência centrípeta. O conceito de indivíduo é de fato um conceito que é colocado a partir da transcendência em que relação não é algo entre eu, tu e ele, mas uma relação do indivíduo com uma realidade transcendente, absoluta, o que dá a essa persona a consistência de uma identidade irredutível. A multidão não é assim, vivemos com os outros, a multidão é o reconhecimento do outro. A singularidade é o homem que vive na relação com o outro, que se define na relação com o outro. Sem o outro ele não existe em si mesmo.
É a partir da singularidade que explica o comum. Busca o comum não significa buscar realidades pressupostas, o velho conceito de gemeinschaft, de comunidade profunda, o velho conceito de terra, natureza. Já são conhecidas as horríveis e perversas concepções que podem vir desta identidade. Sabe-se perfeitamente como, sobretudo em um país como o Brasil, funções, mais que conceitos, de poder e de raça se uniram profundamente para criar diferenças sociais que hoje se transformaram em hereditárias, pesadas, difíceis de superar e que supõem elementos que negam a democracia e a própria possibilidade da utopia. É contra estas coisas que existe este terreno teórico de interpretação e a cada terreno teórico de interpretação deve acompanhar uma capacidade de prática e de ação. Se consideramos que o mundo está feito de singularidades que consistem em relações e que, portanto, existem na medida que estão em relações, aumentamos nossa capacidade de ação. Antes o ministro falava de amor, vamos chamá-lo (o comum) de amor então, mas não é um amor no sentido romântico, não é um amor em um sentido, para assim dizer, vinculado simplesmente ao erotismo ou a coisas similares. É o amor como força ontológica. Como dizia Spinoza, diziam os filósofos, como ultimamente até declarou a Teologia da Libertação, uma das grandes produções teóricas deste país, este amor constitui o ser porque é um ato de solidariedade. Mas isto não é identitário, é algo que existe na relação, o que é absolutamente fundamental porque nos permite nos colocarmos em uma situação de efetiva abertura da discussão.
O que é realmente importante não é fazer discursos filosóficos, retóricos, como estou fazendo aqui agora, como muitas vezes fazemos, sobre o que já estamos todos convencidos e nos convencemos um pouco mais. O problema é outro. O problema é que detrás disto existe uma realidade real, por assim dizer (…). Na análise das condições fundamentais do trabalho informático, do trabalho intelectual aplicado às redes de telemática, encontramos as características de singularidade em uma relação que se convertem em reais e produtivas. e encontramos que a relação entre singularidade e cooperação se tornaram fundamentais.
Em uma discussão anterior, uma pessoa falava da experiência dos hackers. Queria retomar algumas coisas que foram ditas por esta pessoa e colocar assim alguns dos elementos importantes para a qualificação do que hoje é a condição geral da consciência do trabalho. Os hackers não são crackers, não são aqueles que simplesmente rompem, aqueles que produzem vírus ou entram nos sistemas, os hackers são verdadeiros operadores de redes. O que me interessa destacar são algumas características que estão relacionadas com a prática de seu trabalho e que formam parte de sua ética além de formar parte de seu trabalho. Penso que os hackers valorizam antes de tudo uma relação com o trabalho que não se baseia no dever e sim na paixão intelectual por uma determinada atividade, um entusiasmo que é alimentado pela referência a uma coletividade de iguais e reforçada pela questão da comunicação em rede. São vários os autores que explicam essa ética hacker e que insistem em pensar que o espírito hacker consiste na recusa das idéias de obediência, de sacrifício e de dever que sempre foram associadas à ética individualista, à ética protestante do trabalho. Os hackers substituem essa ética não de uma maneira egoísta, mas, ao contrário, por um novo valor que prega que o trabalho é mais alto quanto maior seja a paixão que esse trabalho desperte. Falamos de paixão, aderência, interesse e continuidade. Essa maneira de pensar o trabalho une, fundamentalmente e de maneira indissociável, o prazer intelectual a força pragmática e ao compromisso social. O modo de produção open-source, que é uma invenção dos hackers e que por sorte é exportável (pode ir mais além da prática mais estrita dos hackers, já que é um projeto que pode ser retomado por outros) se tornam imediatamente comunicativo. O software livre com código de fonte aberta (open source software) é um produto de colaboração voluntária, aberta e auto-organizada entre programadores que estão divididos pelo mundo inteiro e que estão ligados em rede produzindo programas abertos e modificáveis pelos usuários locais, que sempre se colocam como competentes iguais. Quando o Linux nasce é uma criação genial que é colocada em circulação. Esta paixão intelectual pelos problemas mais difíceis cria continuamente.
Eu sou espinozista, eu me declaro espinozista com prazer, e se queremos pensar nesse tipo de ética, encontramo-la inteiramente em Spinosa. A mentalidade hacker se desenvolve dentro desse ambiente informático, dessa maneira informática de conhecer, que é resultado da união da paixão, da imaginação e do intelecto. Essa atividade cria uma nova forma de razão que não é mais a raison abstrata – que perde essa função revolucionária fantástica -, mas que é razão que conecta imediatamente o saber, a prática, a imaginação, o social e a cooperação. Não se trata simplesmente, neste caso, de aprender a usar máquinas, apenas se trata, sobretudo, de fazer passar através dessas máquinas aquela construção social que é horizontal e sempre criativa. Veja bem, a interdependência nessas relações é absolutamente fundamental, não há verdade que não seja interdependente, que não esteja conectada, não nasça junto e, portanto, é o sentido comum dessa massa de ações a qual cria a consistência do trabalho hoje. Evidentemente, a informática também é uma coisa estrita em si, mas esse modo de trabalho não se define simplesmente porque trabalha através desse tipo de máquina, esse modo de trabalhar se torna cada vez mais necessário para viver, para produzir. Portanto, singularidade e cooperação se tornam fundamentais na construção de qualquer que seja o bem, a mercadoria e o produto.
Hoje o trabalho assim conduzido, neste regime, representa cada vez mais um excedente, isto é, essa atividade singular, inventiva e social, que é introduzida dentro do mecanismo de trabalho, é algo que não é consumido. A força de trabalho operário de oito horas acabou, se cerra. O trabalhador intelectual continua produzindo. É certo que dentro dessa continuidade existe uma possibilidade de exploração crescente que vai além das oito horas, mas o problema não está aí. O problema é que essa capacidade é uma espécie de independência irredutível à medida capitalista de exploração. Não é que o desenvolvimento capitalista hoje possa ser medido essencialmente por esse tipo de excedente, por esse tipo de nova energia construtiva que está em jogo. Não estamos ante a uma fórmula que explica os rumos das tentativas do capitalismo. Está claro que hoje a tentativa do capitalismo para dominar esse tipo de realidade passa pela financeirização internacional dos processos produtivos e pelas grandes forças globais de controle. É evidente que a chave está no próprio sistema, contudo, também é evidente que dentro desse tipo de controle há algo que falta: a capacidade de amarrar a potência do processo de singularização, do processo de invenção. Quando se fala de singularização, de invenção, se fala também, de maneira necessária e evidente, de resistência.
Não é certo que no desenvolvimento capitalista clássico, fordista, haja simplesmente reprodução dos processos produtivos. Todo o mundo que já trabalhou em uma fábrica, que fez trabalho de agitação em uma fábrica ou que protagonizou lutas em um sistema fordista sabe perfeitamente que sem a inteligência operária, sem o saber profissional, essas fábricas, com suas cadeiras de produção que parecem perfeitas, nunca teriam funcionado. Sempre era a capacidade operária de inventar e de aperfeiçoar as relações que fazia andar ou deter o processo de trabalho na fábrica. Mas hoje essa força de trabalho vivo é infinitamente mais caracterizada e se constitui como a força tendencial, como força ascendente. Encontramos essa capacidade de auto-valorização efetiva, open free source, na constituição das redes de forma independente e livre. Vejam bem, a Microsoft reagiu a este processo e aterrorizou criando um antagonismo interno, não externo. Mas contra isto se pergunta aos que trabalham com rede de forma independente e livre: contra quem lutas? Não luto contra nada, luto para construir minha realidade, estamos construindo esta realidade.
É evidente que agora temos todo o resto que fica fora, é o resto, contudo, não é irrelevante. A propriedade privada e a propriedade pública confrontam-se com as novas formas de propriedade flutuante em torno da rede em nível internacional e com a capacidade que as grandes empresas têm de criar seu mercado e de intervir nessa ordem mercantil e jurídicas que elas criaram com a força e a capacidade de garantir a ordem por meio das multas, penalidades, a exclusão etc. Aquelas formas de propriedade, quando no passado se viram diante da construção da sociedade por ações, ou seja, da divisão da propriedade em várias cotas que contribuíam para a ampliação do capital das empresas, abriram o caminho para falar de socialismo do capital. Hoje estamos diante de fenômenos como a enorme cúpula financeira, e é possível que tenhamos que falar de comunismo do capital. É um comunismo do capital que parte dos capitais mais vorazes, que recorrem, por exemplo, aos fundos de pensões e reúnem todo esse dinheiro em potências espantosas. Neste contexto, é evidente que estamos diante de uma ação coletiva e contínua de esmagamento e exploração dessa nova energia nas formas em que se expressa esse excedente generalizado. E no que se converteu o conceito de propriedade privada? Converteu-se em um obstáculo claro, preciso e contínuo à expressão deste excedente, à expressão do prazer de trabalhar. Foi isso no que converteu a propriedade privada. Também temos que estar muito atentos à propriedade pública cuja realidade não é muito melhor. A propriedade pública está sempre com o capital, necessita de capital.
Então, o que é a propriedade comum? A propriedade comum, do ponto de vista jurídico, é facílima de definir: é uma propriedade pública que, em lugar de ter patrões públicos ou donos públicos, é de sujeitos ativos naquele setor ou naquela realidade, é administrada por eles. A propriedade comum é esse ato, é essa atividade através da qual os sujeitos administram ou gerem, por exemplo, a rede de transportes urbanos porque a rede de transporte urbanos é deles, porque o comum se tornou ou é reconhecido como uma condição para a vida, uma condição biopolítica. O que significa, por exemplo, uma metrópole sem transporte? Nada. O transporte urbano, sobretudo nas grandes metrópoles, é o transporte que dá a dignidade, a possibilidade de circular rapidamente nesse espaço. No espaço da comunicação são a informática e a telemática as que possibilitam essa propriedade comum. A propriedade comum não passa simplesmente pelo Estado, passa pelo exercício que as singularidades fazem desse espaço comum, pela maneira de exercer esse espaço comum. Não depende de etapas no sentido de primeiro fazermos isto e depois fazermos aquilo, como durante tanto tempo ensinaram muitas dogmáticas socialistas (primeiro fazemos isso e depois aquilo e aquilo outro será possível depois de fazer aquela outra coisa). Não é verdade. Agora se trata é de pôr em movimento tudo a uma só vez. Portanto, para além da propriedade pública, a definição jurídica do comum é aquela que possibilita fazer atuar dentro do caráter público a construção de espaços comuns reais, que são estruturas comuns, e fazer atuar nesses espaços de vontade a decisão, o desejo e a capacidade de transformação das singularidades. Isto é uma das coisas que mais me condicionou na vida e que mais condicionou meu pensamento.
Eu fui conquistado por uma greve e Paris no inverno de 1995 para 1996. Era uma greve inicialmente de defesa corporativa do serviço público, dos empregados do metrô e dos transportes de superfície. Em pouquíssimo tempo se transformou em uma enorme luta que durou três meses, uma luta metropolitana para manter o serviço público, para proibir a privatização dos serviços públicos e para defender, de maneira geral, o que esse serviço representava para os cidadãos de Paris. O poder fez de tudo, claro, para intervir, incitando protestos de usuários e outras coisas que estão nos manuais de Ciência Política. Mas não conseguiram nada. Na neve, 8 milhões de parisienses se deslocavam com automóveis particulares, que paravam nos pontos de ônibus ou nas estações de metrô, abriam as portas e levavam quatro ou cinco pessoas até onde necessitavam ir. Isto se prolongou durante três meses e isto é a constituição do comum. É esta participação, esta capacidade de assumir pelas próprias mãos as condições biopolíticas da própria existência, do próprio modo de trabalhar. Esta é uma indicação que tem uma importância em minha experiência. É fundamental tirar as conseqüências disto, uma espécie de pequena filosofia do comum. Esse comum, como já disse, está fundamentalmente articulado, no sentido mais pleno da palavra, com o movimento e a comunicação das singularidades. Não existe um comum que possa ser referido simplesmente a elementos orgânicos ou a elementos identitários. O comum é sempre construído por um reconhecimento do outro, por uma relação com o outro que se desenvolve nessa realidade. Às vezes chamamos essa realidade de multidão porque quando se fala de multidão, de fato, se fala de toda uma série de elementos que objetivamente estão ali e que constituem o comum. Mas o problema é simplesmente ser comuns ou ser multidão, o problema é fazer multidão, construir multidão, construir comum, construir comumente, no comum. Este fato é cada vez mais fundamental.
O terceiro ponto a que me vou referir questiona quais são os temas políticos fundamentais que servem para esta introdução muito geral da constituição do comum. Alguns temas são absolutamente fundamentais. O primeiro deles é a crítica de uma de nossas mais queridas tradições: a tomada do poder. Creio que uma vez que estamos no terreno do comum necessitamos começar a pensar que não existe uma homologação possível entre o poder assim como ele é e aquilo que o comum é. O poder é uma unificação por cima constantemente restritiva, englobadora, mistificadora e destruitiva das singularidades e da capacidade de determinar a renovação através justamente dessa contínua construção singular do comum. Portanto, nos perguntamos como é possível imaginar um processo revolucionário que não esteja dirigido de maneira paranóica para a tomada de poder senão que esteja organizado de maneira criativa através de uma gestão do comum, de um exercício do comum. Dentro dessa perspectiva, creio que há indicações importantíssimas nestes últimos anos, sobretudo nos movimentos que nasceram em Seatlle e inclusive em algumas das grandes experiências dos zapatistas, entre outros. Assim encontramos ali de onde as forças de esquerda tomaram as estruturas, a idéia de considerar as estruturas de governo como um espaço aberto do qual se devem abrir continuamente pressões com o objetivo de transformar o governo em governança, mas não uma governança concebida como uma forma de administração atenta às diversidades e capaz de resolver ponto por ponto e de maneira paternalista ou funcional os problemas e sim como contradições abertas e que tem de continuar abertas. Hoje, esta relação entre movimentos e governos é algo que está em crise. Contudo, essa relação viveu momentos muito ilusórias de abertura e de idéias. Nestes casos, o problema não era tanto o da tomada do poder através da gestão do management, do comum, de uma valorização que se converte efetivamente na capacidade de incidir ou de influencia as redes administrativas, começando a abri-las, insistindo nessa abertura. Em minha opinião, esta é uma conseqüência da idéia do comum que começamos a elaborar e a maneira como muito provavelmente vamos conseguir determinar algumas aberturas novas.
Eu estou convencido de que o processo político alternativo, altermundista, está em dificuldades e que de agora em diante terá que enfrentar a novos problemas sociais vinculados às novas formas de trabalho, às conseqüências da precarização geral, às novas divisões sociais, ao aumento da miséria e da pobreza, etc. hoje já se está abrindo um novo ciclo social de lutas que terá, muito provavelmente, novas características e toda uma série de forças que, todavia, estão repetindo velhos dogmas e velhas ladainhas que, na prática, serão deixadas de lado. Porque o que interessa é isso, essa gestão, essa positividade da luta que corresponde a um novo prazer do trabalho. Portanto, creio que neste terreno encontraremos muitos espaços comuns de discussão.
Quero dizer uma última coisa para terminar. Creio que hoje, de fato, esta constituição do comum permite que nos aproximemos de uma nova construção, muito aberta, da razão, de uma razão biopolítica que vem do interior de uma nova realidade. Esta razão biopolítica, em minha opinião, supõe três coisas: antes de mais nada, esse reconhecimento fundamental de que não é mais possível um desenvolvimento canônico que não seja com base em uma apropriação social dos bens comuns; em segundo lugar, a dimensão biopolítica como tal dos corpos e não da ideologia, questão que se converteu em absolutamente prioritária; em terceiro lugar, que haja várias questões relativas à liberdade, etc, que são totalmente internas ao novo modo de trabalhar e que são mantidas e devem ser desenvolvidas.
O que mais me interessa destacar é o seguinte. Quando falamos desta realidade do comum e a vinculamos a nova realidade do trabalho estamos vivendo uma coisa sem dúvida original, nova, estamos registrando uma nova experiência. Contudo, se olharmos para trás na história, seja na história da filosofia ou do pensamento, seja na história das lutas dos povos e dos sujeitos contra o colonialismo, ou seja, em toda a história do socialismo revolucionário, encontramos sempre vivo um modelo de outra civilização, um modelo que não é utopia senão permanência de tradições, de forças, de constituições antropológicas reais. Este outro modelo, da época do moderno, podemo-lo ver, por exemplo, na filosofia. Não há dúvida de que o pensamento desde Maquiavel a Spinoza ou até Marx, em relação a todos os que elogiavam a transcendência e o poder absoluto do soberano, promoveu idéias de origem republicana e idéias de libertação fortíssima que sempre se renovaram e se mantiveram vivas a pesar de ser derrotadas. Podemos dizer que estas idéias constituem o pouco de bom que a democracia representa como ela é, não aquela que queremos, senão a democracia como forma de governo, aquela que é defendida pelo Sr. Bush., porque algo se pode salvar dela. O que me interessa são estas outras realidades, as realidades derrotadas ainda que sempre vivas ou sempre vencedoras a partir da perspectiva do pensamento. Podem pensar, por exemplo, quando falamos do comum, nas experiências formidáveis de resistência nos países coloniais, nos países colonizados, na América Latina, na Índia ou na China. São experiências fantásticas de comunidades que sempre viveram dentro da derrota, sob a repressão e que propunham continuamente modelos alternativos. Não são utopias, são estruturas antropológicas que encontramos nas mais diferentes formas de expressão e que tem uma importância enorme. Estas ideologias derrotadas, estas realidades esmagadas podem converter-se em elementos de construção do novo porque este novo é extraordinariamente semelhante à idéia de liberdade, de comum que existiu nesse passado. Pensem no socialismo, até ele viveu essa respiração tremenda entre a necessidade de ser Estado e o desejo de massas de liberação. Não há dúvida de que o desejo massivo de libertação foi derrotado e brutalizado na história deste último século, mas a idéia de comunista foi renovada pelas novas técnicas, pelos novos sentimentos, pelo desejo de valorização e desenvolvimento e, sobretudo, por nossa necessidade de viver felizes.