Maurice Blanchot: A Besta de Lascaux
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blanchot
In Revista Polichinelo. Tradução: Eclair Antonio Almeida Filho
Por Maurice Blanchot
Gostaria muito de lembrar que este texto foi, pela primeira vez, editado em livro por G. L. M. em 1958. Hoje, a reedição gostaria, não de abolir, mas de restituir por uma lembrança fugaz, como uma dupla homenagem à amizade, a de René Char, a de Guy Levis Mano, aquilo que nos vem da poesia, como de uma eternidade sempre passageira. M.B
Gostaria muito de lembrar que este texto foi, pela primeira vez, editado em livro por G. L. M. em 1958. Hoje, a reedição gostaria, não de abolir, mas de restituir por uma lembrança fugaz, como uma dupla homenagem à amizade, a de René Char, a de Guy Levis Mano, aquilo que nos vem da poesia, como de uma eternidade sempre passageira. M.B
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A BESTA INOMINÁVEL
A Besta Inominável encerra a marcha do gracioso
Tropel, como um cíclope burlesco.
Oito chacotas formam seu adorno, dividem sua loucura.
A Besta arrota devotamente no ar rústico.
Seus flancos estufados e caidiços são dolorosos, vão
Se esvaziar de sua prenhez.
De seus cascos até suas vãs defesas; ela está
Envolta em fedor.
Assim me aparece no friso de Lascaux, mãe fan-
tasticamente disfarçada,
A Sabedoria com os olhos cheios de lágrimas.
René Char
*
Em Fedro, Platão evoca, para condená-la, uma estranha linguagem: eis que alguém fala e, no entanto, ninguém fala; é, pois, uma palavra[i], mas ela não pensa aquilo que ela diz, e diz sempre a mesma coisa, incapaz de escolher seus interlocutores, incapaz de responder se eles a interrogam, e de socorrer a si mesma se a atacam: destino que a expõe a rolar por todos os lados, ao acaso, e que expõe a verdade a devir semente de acaso; confiar a essa palavra o verdadeiro é realmente confiá-lo à morte. Sócrates propõe, pois, que, dessa palavra, se[ii] se afaste o máximo possível, como que de uma perigosa doença, e que se se atenha à verdadeira linguagem, que é a linguagem falada, onde a palavra está segura de achar na presença daquele que a exprime uma garantia viva.
Palavra escrita: palavra morta, palavra do esquecimento. Essa extrema desconfiança pela escrita, partilhada ainda por Platão, mostra qual dúvida pôde fazer nascer, quais problemas suscitar o uso novo da comunicação escrita: o que é essa palavra que não tem por trás de si a caução pessoal de um homem verdadeiro e preocupado com a verdade? O humanismo já tardio de Sócrates se acha aqui a igual distância de dois mundos que ele não desconhece, que ele recusa por uma escolha vigorosa. De um lado, o saber impessoal do livro que não pede para ser garantido pelo pensamento de um só, pensamento que não é jamais verdadeiro, pois ele não pode se fazer verdade senão no mundo de todos e pelo advento mesmo desse mundo. Um tal saber está ligado ao desenvolvimento da técnica sob todas as formas e faz da palavra, da escrita, uma técnica.
Mas Sócrates, que rejeita o saber impessoal do livro, não rejeita menos – ainda que com mais reverência - uma outra linguagem impessoal, a palavra pura que dá entendimento ao sagrado. Nós não somos mais, diz Sócrates, daqueles que se contentavam em escutar a voz do carvalho ou a de uma pedra. « Vós outros, os modernos, quereis saber quem é aquele que fala e de que região ele é[iii]. » De modo que tudo aquilo que é dito contra a escrita serviria, também, muito bem para desacreditar a palavra recitada do hino lá onde o recitante - que ele seja o poeta ou o eco do poeta-, não é mais que o órgão irresponsável de uma linguagem que o ultrapassa infinitamente.
E, nisso, misteriosamente, a escrita, ligada, no entanto, ao desenvolvimento da prosa, quando o verso cessa de ser um meio indispensável para a memória, a coisa escrita aparece essencialmente próxima da palavra sagrada, da qual ela parece portar na obra a estranheza, da qual ela frequenta assombrosamente a desmedida, o risco, a força que escapa a todo cálculo e recusa toda garantia. Como a palavra sagrada, aquilo que é escrito vem não se sabe de onde, é sem autor, sem origem e, por aí, reenvia a alguma coisa de mais original. Por trás da palavra do escrito, ninguém está presente, mas ela dá voz à ausência, como no oráculo onde fala o divino, o deus ele mesmo não está jamais presente em sua palavra, e é a ausência de deus que então fala. E o oráculo, não mais que a escrita, não se justifica, não se explica, não se defende: nenhum diálogo com o escrito e nenhum diálogo com o deus. Sócrates permanece assustado com esse silêncio que fala.
Diante da estranheza da obra escrita, seu mal-estar é finalmente aquele que ele prova diante da obra de arte, cuja essência insólita lhe inspira desconfiança, quando não desprezo: « Aquilo que há sem dúvida de terrível na escrita, é, Fedro, a sua semelhança com a pintura: os rebentos desta não se apresentam como seres vivos, mas não se calam majestosamente quando se os interroga? » Aquilo que o perturba portanto, aquilo que lhe parece « terrível », é, na escrita como na pintura, o silêncio, silêncio majestoso, mutismo em si mesmo inumano e que faz passar na arte o estremecimento das forças sagradas, essas forças que, pelo horror e pelo terror, abrem o homem a regiões estrangeiras.
Nada mais impressionante que essa surpresa diante do silêncio da arte, esse mal-estar do amador de palavras, do homem fiel à honestidade da palavra viva: o que é isso que tem a imutabilidade das coisas eternas e que, no entanto, não é senão aparência, que diz coisas verdadeiras, mas por trás do qual não há senão o vazio, a impossibilidade de falar, de tal maneira que aqui o verdadeiro não tem nada que o sustenha, aparece sem fundamento, é o escândalo daquilo que parece verdadeiro, não é senão imagem e, pela imagem e o semblante, atrai a verdade para a profundeza onde não há nem verdade, nem sentido, nem mesmo erro? Eis porque Platão e Sócrates, na mesma passagem, se apressam em fazer da escrita, bem como da arte, um divertimento em que o sério não está comprometido, que se reservará às horas de recreação, semelhante a esses jardins em miniaturas formados artificialmente em corbelhas para o ornamento das festas e chamados jardins de Adonis. O discurso escrito, o « volume », não será, portanto, senão um « jardim em letras de escrita », capaz, no máximo, de comemorar as obras ou os eventos do saber, sem ter nenhuma parte com o trabalho de sua descoberta. E se vê aqui Sócrates aproximar de novo a escrita do sagrado ao aproximá-la da celebração que interrompe a atividade laboriosa do homem votado ao verdadeiro para introduzi-lo no tempo em que deuses e homens se encontram: o tempo da festa. Só que a antiga selvageria profética do carvalho não é mais que um amável jardim em miniatura, do mesmo modo que a festa não é mais que um divertimento.
As vezes se pergunta por que René Char, poeta ligado a nosso destino, se sente intimamente próximo do nome de Heráclito, de quem ele mesmo evocou a figura vitoriosa, « a visão de águia solar », « gênio orgulhoso, estável e ansioso[iv] », mas o qual evocam, portam diante de nós, por uma chamada mais imediata, tantas de suas obras, fulgores de poema onde o poema parece reduzido ao gume do puro fulgor, ao corte de uma decisão.
Talvez um começo de resposta nos será dado por dois pensamentos de Heráclito. Heráclito responde neles de algum modo a Sócrates ao reconhecer naquilo que faz da palavra impessoal do oráculo um perigo e um escândalo, a autoridade verdadeira da linguagem: « O Senhor cujo oráculo está em Delfos, não exprime nem dissimula nada, mas indica. » O termo « indica » faz aqui um retorno a sua força de imagem e faz com o verbo o dedo silenciosamente orientado, o «indicador cuja unha está arrancada » e que, não dizendo nada, não escondendo nada, abre o espaço, abre-o a quem se abre a essa vinda. Sócrates tem, sem dúvida, razão: aquilo que ele quer, não é uma linguagem que não diga nada e por trás da qual nada se dissimule, mas uma palavra segura, penhorada por uma presença: que se possa trocar e feita para a troca. A palavra à qual Sócrates se fia é sempre palavra de alguma coisa e palavra de alguém, uma e outro sempre já revelados e presentes, jamais uma palavra que começa. E, por aí, deliberadamente, com uma prudência que não é preciso desconhecer, ele renuncia a toda linguagem voltada em direção à origem, tanto ao oráculo quanto à obra de arte pela qual é dada voz ao começo, apelo endereçado a uma decisão inicial.
A linguagem na qual fala o original é essencialmente profética. Isso não significa que ela dite os eventos futuros: isso quer dizer que ela não toma apoio em alguma coisa que já exista, nem sobre uma verdade em curso, nem sobre a só linguagem já dita ou verificada. Ela anuncia, porque ela começa. Ela indica o porvir: porque ela não fala ainda, linguagem do futuro, nisso que ela é ela mesma como que uma linguagem futura, que sempre se adianta, não tendo seu sentido e sua legitimidade senão adiante de si, quer dizer, no fundo injustificada. E tal é a sabedoria desrazoável da Sibila, a qual se faz ouvir durante mil anos, porque ela não é jamais ouvida agora, e essa linguagem que abre a duração, que dilacera e debuta, é sem sorriso: sem adorno e sem maquiagem, nudez da palavra primeira: « A Sibila que, com uma boca espumante, faz ouvir palavras sem elegância, sem adorno e sem maquiagem, faz ressoar seus oráculos durante mil anos, pois é o deus quem a inspira. »
Se se julgasse útil retomar em poucos traços a força do poema tal como ele se clareia na obra de René Char, poder-se-ia contentar-se em dizer que ele é essa palavra futura, impessoal e sempre por vir em que, na decisão de uma linguagem que começa, é-nos, entretanto, intimamente falado daquilo que se joga no destino que nos é o mais próximo e o mais imediato. É, por excelência, o canto do pressentimento, da promessa e do despertar – não que ele cante aquilo que será amanhã, nem que nele um porvir, feliz ou infeliz, nos seja precisamente revelado -, mas ele liga firmemente, no espaço que o pressentimento retém, a palavra ao impulso e, pelo impulso da palavra, ele retém firmemente o advento de um horizonte mais amplo, a afirmação de um dia primeiro. O porvir é raro, e cada dia que vem não é um dia que começa. Mais raro ainda é a palavra que, em seu silêncio, é reserva de uma palavra por vir e nos volta, nem que seja para o mais perto de nosso fim, em direção à força do começo. Em cada uma das obras de René Char, nós ouvimos a poesia pronunciar o juramento que, na ansiedade e na incerteza, a une ao porvir dela mesma, a obriga a não falar senão a partir desse porvir para dar, de antemão, a essa vinda a firmeza e a promessa de sua palavra.
Em Moulin premier: « Advém ao poeta encalhar, no curso de suas buscas, numa margem onde ele não era esperado senão muito mais tarde, após seu aniquilamento ». Em Partage formel: « A cada effondrement das provas o poeta responde por uma salva de porvir. » Em Le Poème pulvérisé: «Poesia, a vida futura no interior do homem requalificado. » Em Les Matinaux, cujo nome é já uma chamada a « Premiers levés »: « Conquista e conservação indefinida dessa conquista adiante de nós que murmura nosso naufrágio, derrota nossa decepção. » Ou ainda, em uma das obras recentes, essa espécie de conclusão grave: « Eu não estou muito distanciado no presente da linha de encaixe e do instante final em que, toda coisa em meu espírito, por fusão e síntese, tendo devindo ausência e promessa de um futuro que não me pertence, eu vos suplicaria a me conceder meu silêncio e minha liberação[v]. »
Desenlace no silêncio futuro de onde, precisamente, se elevam hoje os movimentos desconcertantes do poema intitulado Lettera amorosa, em que o espaço e a liberdade do amor, a intimidade amante do poeta nos são tornadas presentes com a simplicidade das palavras intactas, e, apesar da aparência, é, pois, ainda a poesia que nos fala aqui de si mesma, que nos fala, sob o rosto da paixão, de sua essência sempre futura, de seu arrebatamento sempre por vir em seu presente mais real e mais ardente: ela está ligada nisso ao desejo que é, como ela, a efervescência de todo o porvir na queimadura do instante, ela lhe é eternamente unida, como o disse a palavra de Seuls demeurent: « O poema é o amor realizado do desejo permanecido desejo» e como o confirmam as páginas de Lettera amorosa em que parece que a poesia quer captar, por trás da luz, a aberrtura violenta, a chanfradura mais inicial pela qual tudo se ilumina e se desperta e se promete: « Toda a boca e a fome de alguma coisa de melhor que a luz (de mais chanfrado e de mais agarrante) se desencadeiam[vi].»
Mas são aqui somente marcas. Aquilo que seria necessário precisar ainda: poema no qual o poema está como que por vir, no qual é erguida a promessa, a decisão de um começo, ele toma daí essa palavra às vezes breve, que se poderia dizer retida, se ela não fosse a prodigalidade preservada, plenitude e generosidade da fonte. « Senhor Tempo ! Loucas Ervas! Caminhantes potentes! » Palavra que não se repete, que não usa de si mesma, que não diz as coisas já presentes, que não é o vai-e-vem incansável do diálogo de Sócrates, mas, como a palavra do Senhor de Delfos, ela é a voz que ainda não disse nada, que se desperta e que desperta: voz às vezes áspera e exigente, que vem de longe e que chama para o longe.
Daí ainda que, na firmeza que a ergue e a mantém numa constante insurreição, ela ligue o poema ao maior risco, o confie a esse risco, e essa confiança no « considerável perigo », pela qual nossa própria situação se clareia, designa bem a poesia para a aventura que ela deve essencialmente ser, quando se expõe, sem garantia e sem certezas, à liberdade daquilo que não está ainda que por vir.
Palavra densa, fechada sobre sua própria ansiedade, que nos interpela e nos empurra para frente, de modo que ela parece, às vezes, unir poesia e moral e nos dizer aquilo que é esperado de nós, mas é porque ela é, para si mesma, essa injunção que é a forma de todo começo. Toda palavra que começa, ainda que seja o movimento mais doce e mais secreto, é, porque ela nos adianta infinitamente, aquela voz que abala e que exige mais: tal como o mais delicado nascer do dia no qual se declara toda a violência de uma primeira claridade, e tal como a palavra oracular que não dita nada, que não obriga a nada, que não fala mesmo, mas faz com esse silêncio o dedo imperiosamente fixado em direção ao desconhecido.
Quando o desconhecido nos interpela, a palavra toma emprestada do oráculo a sua voz onde não fala nada de atual, mas que força aquele que a escuta a se arrancar a seu presente para dele vir a si mesmo como àquilo que não existe ainda, essa palavra é frequentemente intolerante, de uma violência altiva que, em seu rigor e por sua sentença indiscutível, nos tira de nós mesmos, ignorando-nos. Profetas e visionários falam com uma soberania tanto mais abrupta quanto aquilo que fala neles os ignora: essa ignorância que os torna tímidos torna-os autoritários e dá a suas vozes mais dureza que fulgor.
É a chance do poema poder escapar à intolerância profética, e é essa chance que, com uma pureza da qual mal nos damos conta, a obra de René Char nos oferece, ela que nos fala de tão longe, mas com uma íntima compreensão que no-la torna tão próxima, - que tem a força de impessoal, mas é para a fidelidade de um destino próprio que ela nos chama, obra tendida mas paciente, tempestuosa e plana, enérgica, concentrando em si, na brevidade explosiva do instante, uma potência de imagem e de afirmação que « pulveriza » o poema e, no entanto, guarda a lentidão, a continuidade e o entendimento do ininterrupto।
De onde vem isso? É que ela diz o começo, mas pela longa, paciente, silenciosa aproximação da origem e na vida profunda do todo, dando acolhida ao todo. A natureza é potente sobre essa obra, e a natureza não é somente as sólidas coisas terrenas, o sol, as águas, a sabedoria dos homens duráveis, não é mesmo todas as coisas, nem a plenitude universal, nem o infinito do cosmos, mas aquilo que é já antes de « tudo », o imediato e o muito longínquo, aquilo que é mais real que todas as coisas reais e que se esquece em cada coisa, o laço que não se pode ligar e pelo qual tudo, o todo se liga. A natureza é, na obra de René Char, essa prova da origem, e é nessa prova em que ela é exposta ao jorrar de uma liberdade sem medida e à profundidade da ausência de tempo que a poesia conhece o despertar e, devindo palavra que começa, devém a palavra do começo, aquela que é o juramento do porvir. Eis porque ela não é a antecipação que, de uma maneira provocante, se lançaria profeticamente no tempo e fixaria, ligaria o futuro; ela não é muito menos palavra de vidente, à maneira « desregrada » de Rimbaud, mas é « previdente », como aquilo que reserva e salvaguarda, aquilo que assegura e aclimata a vida profunda e a livre comunicação do todo, palavra na qual a origem se faz começo.. « Os grandes previdentes precedem um clima, às vezes o fixam, mas não adiantam fatos. Eles podem, no máximo, deduzindo-os desse clima, rabiscar os contornos de seus fantasmas e, se eles tiverem escrúpulo, por antecipação, tirar-lhes o brilho. Aquilo que terá lugar banha, ao mesmo título, aquilo que passou numa espécie de imersão. » « Mas quem restabelecerá em torno de nós essa imensidade, essa densidade, realmente feitas para nós, e que, de todas as partes, não divinamente, nos banhavam? » (À une Sérénite crispée
Nota do tradutor[i] : Blanchot emprega “palavra” [parole] no sentido de discurso, de fala, como na expressão “a palavra de Deus” [a fala que viria de Deus].[ii] Blanchot usa o pronome pessoal l’on de modo impessoal, que teria como equivalente em português o pronome se em suas funções de indeterminador e apassivador do sujeito gramatical. Por isso, para diferenciar o se pronome impessoal do caso reto do “se” pronome pessoal oblíquo usaremos o “se” pronome impessoal do caso reto em itálico.[iii] A partir da tradução francesa de Léon Robin, edição de la Pléiade.[iv] Avant-propos à Héraclite d’Éphèse, traduction nouvelle d’Yves Battistine, éditions « Cahiers d’Art ».[v] À une Sérénité crispée, Gallimard, 1951.[vi] Lettera amorosa, Gallimard, 1953.[vii] Essa «imensidade » da « imersão », que é o espaço mesmo do canto no qual vive o todo, Partage formel a clareia assim: « Em poesia, é somente a partir da comunicação e da livre disposição da totalidade das coisas entre si através de nós, que nós nos encontramos empenhados e definidos, do mesmo modo que obtemos nossa forma original e nossas propriedades probatórias. »[viii] La Paroi et la Prairie, G. L. M., 1952.[vii].)
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Se a palavra do poema, na obra de René Char, evoca a palavra do pensamento em Heráclito, tal como ela nos foi transmitida, nós o devemos, parece, a essa relação [rapport] com a origem, relação em um e no outro, não tão confiante nem estável, mas dilacerada e tempestuosa. Xenófanes, sem dúvida mais jovem que Heráclito, mas como ele daqueles que, com uma ternura um pouco zombeteira, Platão chamava de « os Velhos », era um desses aedos errantes, que iam de país em país e viviam de seus cantos; só que aquilo que cantava em seu canto, era já o pensamento, uma palavra que recusava as lendas dos deuses, as interrogava asperamente e se interrogava a si mesma, de modo que aqueles que o escutavam assistiam a esse evento muito estranho: o nascimento da filosofia no poema.
Existe, na experiência da arte e na gênese da obra, um momento em que esta não é ainda senão uma violência indistinta que tende a se abrir e a se fechar, que tende a se exaltar num espaço que se abre e que tende a se retirar para a profundidade da dissimulação: a obra é, então, a intimidade em luta de momentos irreconciliáveis e inseparáveis, comunicação dilacerada entre a medida da obra que se faz poder e a desmedida da obra que quer a impossibilidade, entre a forma onde ela se capta e o ilimitado onde ela se recusa, entre a obra como começo e a origem a partir da qual não há jamais obra, onde reina o desobramento eterno. Essa exaltação antagonista é aquilo que funda a comunicação e é ela que tomara finalmente a forma personificada da exigência de ler e da exigência de escrever. A linguagem do pensamento e a linguagem que se projeta no canto poético são como as direções diferentes que tomou esse diálogo original, mas, em uma e na outra, e cada vez que uma e outra renunciam à forma apaziguada e remontam em direção à sua fonte, parece que recomeça, de uma maneira mais ou menos « viva », esse combate mais original de exigências mais indistintas, e se pode dizer que toda obra poética, no curso de sua gênese, é retorno a essa contestação inicial e que mesmo, enquanto ela é obra, ela não cessa de ser a intimidade de seu eterno nascimento.
Na obra de René Char, tal como nos fragmentos de Heráclito, é a essa eterna gênese que nós assistimos de momento em momento, a esse duro combate junto do anterior, lá onde a transparência do pensamento se faz dia através da imagem obscura que a retém, onde a mesma palavra, sofrendo uma dupla violência, parece se clarear pelo silêncio nu do pensamento, parece se adensar, preencher-se da profundidade falante, incessante, murmúrio onde nada se deixa ouvir. Voz do carvalho, linguagem rigorosa e fechada do aforismo, é assim que nos fala, na indistinção de uma palavra primeira, « mãe fantasticamente disfarçada, a Sabedoria com os olhos cheios de lágrimas » que, olhando o friso de Lascaux, René Char identificou sob a figura da « Besta inominável[viii] »। Estranha sabedoria, muitíssimo antiga para Sócrates e muitíssimo nova também e da qual, entretanto, apesar do mal-estar que o fazia se distanciar dela, deve-se crer que ele não está excluído, ele que não aceitava como penhor à palavra senão a presença de um homem vivo e que, no entanto, veio a morrer por isso, a fim de manter palavra.