Eduardo Viveiros de Castro lê 'Arqueologia da violência', de Clastres
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"Arqueologia da violência”, publicado originalmente em 1980 sob o título “Pesquisas de antropologia política”, compreende textos escritos, em sua maioria, pouco antes da morte do autor, em 1977. Ele forma um par natural com a coletânea publicada em 1974, “A sociedade contra o Estado”. Se esta última possui uma maior unidade interna, e contém mais artigos baseados em experiência etnográfica direta, a presente coletânea documenta a fase intensamente criativa em que se achava Pierre Clastres quando do acidente em que perdeu a vida, aos 43 anos, em uma estrada das Cévennes, no Maciço central francês. Os trabalhos aqui reunidos compõem, assim, um livro de transição, que projeta uma obra inacabada; transição e obra que cabe agora a seus leitores — especialmente, é claro, aos etnólogos americanistas —, completar e prolongar o melhor que soubermos.
Entre vários textos notáveis deste “Arqueologia da violência”, destacam-se, sem sombra de dúvida, os dois capítulos finais: o ensaio que dá nome ao livro nesta edição e o artigo subsequente, o último que Clastres publicou em vida. Eles imprimem uma inflexão decisiva ao conceito que tornou seu autor célebre, a “sociedade-contra-o-Estado”. Retomando o problema clássico das relações entre a violência e a constituição do corpo político soberano, Clastres propõe nesses artigos uma relação funcional positiva entre a “guerra” (melhor dizendo, o estado metaestável de hostilidade virtual entre comunidades locais relativamente autônomas) e a intencionalidade coletiva que define ou constitui as chamadas sociedades primitivas — o espírito de suas leis, para falarmos como Montesquieu.
A antropologia encarna, para Clastres, um projeto de consideração do fenômeno humano como definido por uma alteridade intensiva máxima, uma dispersão cujos limites são a priori indetermináveis. “Quando o espelho não nos devolve nossa própria imagem, isso não prova que não haja nada a observar” ([1974] 2003: 35). Essa constatação seca encontra eco em uma formulação recente de Patrice Maniglier a propósito do que este filósofo chama de “a mais alta promessa” da antropologia, a saber, a de “nos devolver uma imagem de nós mesmos em que não nos reconheçamos” (2005: 773-74). O propósito de tal consideração, o espírito dessa promessa, não pode ser então o de reduzir a alteridade que envolve o percurso interno do conceito de humano, mas sim o de multiplicar as suas imagens. Alteridade e multiplicidade definem ao mesmo tempo o modo como a antropologia constitui a relação com seu objeto e o modo como seu objeto se autoconstitui. “Sociedade primitiva” ou “contra o Estado” é o nome que Clastres deu a esse objeto, e ao seu próprio encontro com a multiplicidade. E se o Estado existiu desde sempre, como argumentaram Deleuze & Guattari (1980: 445), então a sociedade primitiva também existirá para sempre: como exterior imanente do Estado, força de antiprodução sempre a ameaçar as forças produtivas, multiplicidade não interiorizável pelas grandes máquinas mundiais. “Sociedade primitiva”, em suma, é uma das muitas encarnações conceituais da perene tese da esquerda de que um outro mundo é possível: de que há vida fora do capitalismo, como há socialidade fora do Estado. Sempre houve, e — é para isso que lutamos — continuará havendo.
O projeto de Clastres era o de transformar a antropologia “social” ou “cultural” em uma antropologia política, no duplo sentido de uma antropologia que tomasse o poder (não a “dominação”, a “exploração” ou o “conflito”) como imanente à vida social, e, mais importante, que fosse capaz de levar a sério a alteridade radical da experiência dos povos ditos primitivos, o que requeria, antes de mais nada, o reconhecimento de sua plena capacidade de autoinvenção e de autorreflexão. Para isso, era preciso primeiro romper a relação teleológica — melhor dizendo, teológica — entre a dimensão política da vida coletiva e a forma-Estado, afirmada e justificada por virtualmente toda a filosofia ocidental. Deleuze escreveu, em uma passagem famosa: “A esquerda precisa que as pessoas pensem, e seu papel, esteja ela ou não no poder, é o de descobrir um tipo de problema que a direita quer a todo custo esconder” (1990a: 173). O problema que Clastres descobriu, o da coincidência fortuita entre poder e coerção, é um daqueles que a direita precisa esconder. A antropologia só se tornará realmente política, afirma Clastres, a partir do momento em que for capaz de mostrar que o Estado e tudo aquilo a que ele deu origem (em particular, as classes sociais) são uma contingência histórica, um infortúnio acidental antes que um destino essencial, e que às sociedades que não o têm não falta nada, senão a vontade de ser tida por ele, a estranha vontade negativa de ter uma falta que o necessite. É com o Estado e pelo Estado que a necessidade se substitui à suficiência.
A sociedade primitiva talvez fosse, para Clastres, algo como uma essência; mas não era uma essência estática. O autor sempre a concebeu como um modo de funcionamento profundamente instável, em sua busca mesma de estabilidade a-histórica. (...) Pois existe, sim, um “modo de ser” muito característico do que ele chamou sociedade primitiva, e que nenhum etnógrafo que tenha convivido com uma cultura amazônica, mesmo uma daquelas que mostra elementos importantes de hierarquia e de centralização, pode ter deixado de experimentar em toda sua evidência, tão inconfundível como elusiva. Esse modo de ser é “essencialmente” uma política da multiplicidade; Clastres pode ter-se enganado ao interpretá-la (não é claro que o tenha feito) como se ela devesse se exprimir, em toda parte, como multiplicidade “política”, isto é, como uma forma institucionalizada de autorrepresentação coletiva.
Imaginemos a etnologia clastriana como um drama conceitual onde se defrontam um pequeno número de personagens ou tipos: o chefe, o inimigo, o profeta, o guerreiro. Todos constituem figuras de alteridade, operadores paradoxais que definem o socius por meio de alguma forma de negação (a sociedade primitiva de Clastres parece sempre projetar uma antropologia negativa, ou talvez contra-afirmativa: contra o Estado, contra a história, contra a economia, contra a troca). Assim, o chefe encarna o exterior da Troca fundadora da sociedade, e representa o grupo na medida em que tal exterioridade é interiorizada e domesticada: ao tornar-se “o prisioneiro do grupo”, ele permite sua unidade e indivisão. O inimigo nega o Nós coletivo, permitindo que este se afirme contra ele, por sua exclusão violenta; o inimigo morre para assegurar a persistência do múltiplo, a lógica da separação. O profeta, por sua vez, é o “inimigo” do chefe, ele afirma a sociedade contra a chefia quando esta ameaça escapar do controle do grupo e se afirmar como poder transcendente; ao mesmo tempo, o profeta arrasta a sociedade para uma saída impossível, a autodissolução. O guerreiro, por fim, é o inimigo de si mesmo, destruindo-se na demanda da imortalidade gloriosa, impedido pela sociedade que ele defende de transformar seu valor no combate em valor de poder. O chefe é uma espécie de inimigo, o profeta uma sorte de guerreiro, e assim por diante.
Essas quatro personagens formam então um círculo de alteridade que contraefetua ou contrainventa a sociedade primitiva. Mas no interior do círculo não está o Sujeito, o Eu-Nós, a forma reflexiva da Identidade. O quinto elemento, que pode ser dito o elemento dinâmico central precisamente por sua excentricidade, é o personagem sobre o qual se apoia toda política da multiplicidade: o aliado político, interposto entre os polos de interioridade e exterioridade ocupados pela comunidade de referência e as comunidades inimigas. Nunca há apenas duas posições no socius primitivo, tudo gira em torno do aliado, o terceiro termo que permite converter a indivisão interna na fragmentação externa e reciprocamente, modulando a guerra indígena e a transformando em uma relação social plena, ou mesmo, como sustenta Clastres, no nexo fundamental, “arqueológico”, da socialidade primitiva.
Assim, quando Sztutman (2011: 35) discerne pertinentemente uma conversão da negatividade em positividade na evolução teórica de Clastres, na medida em que a “sociedade-contra-o-Estado” se reformula em “sociedade-para-a-guerra”, penso que haveria que ir mais longe. Deve-se poder ver (ou seja, defender) algo mais que uma troca de sinal. É preciso inverter a ordem das razões, liberando a teoria clastriana de qualquer interpretação funcionalista (no sentido de Radcliffe-Brown). A guerra primitiva não tem necessariamente uma “função social”, mas ela terá sempre um efeito político. A negação do Estado seria neste caso uma consequência da afirmação da guerra e não sua causa final. A guerra não teria, assim, qualquer função ou razão (isto é, uma representação que comanda a instituição) para além daquelas dadas transparentemente pelas cosmologias indígenas, mas nada mais, nem menos, que consequências ou efeitos. Talvez não haja, a rigor, uma função política, apenas funcionamentos políticos. O que não é a mesma coisa que dizer que a política está em toda parte. Talvez ela esteja, privilegiadamente, em certas partes — em certas dimensões da vida coletiva que não têm por que ser as mesmas em toda parte (como justamente mostrou Clastres, ao distinguir o político da divisão estatal). Ela pode estar, por exemplo, no caso amazônico, exatamente nas relações intercomunitárias, como mostram a etnografia dos Yanomami ou dos Jívaro, para os quais a guerra e a política estão não apenas em “continuação”, mas em estrita cointensividade. O que seria um modo de dizer que a política não é o lugar de produção da identidades, mas a zona de circulação de alteridades.
A política, ou o político, pode assim “estar” privilegiadamente nas relações intercomunitárias — mas pode não estar, ou não apenas, ou não simplesmente. A política pode produzir a multiplicidade comunitária, na medida em que ela opera, empírica e historicamente, “antes” delas, no coração mesmo da comunidade una e indivisa; mas só será assim porque ela existe, já lá, como guerra — o que faz com que, por seu turno, o horizonte multicomunitário esteja desde o início incluído na definição da comunidade.
Assim se articulam, assimetricamente, os dois lados da máquina antiestatal clastriana. A política se reintroduz dentro da comunidade una e indivisa, dividindo-a incessantemente (na horizontal) e assim funcionando como a causa empírica, de facto, daquele “exterior” — como motor da fissão geradora da multiplicidade de grupos locais, que passam de ex-parentes a inimigos a aliados e back again —, o qual, por sua vez, funciona como causa transcendental, ou de jure, de toda interioridade social possível. Com isso, entretanto, se dissolvem definitivamente quaisquer fronteiras outras que contingentes entre o interno e o externo. Pois não estamos, este é o ponto, sob a lei do Estado, “a lei do interior e do exterior” (Deleuze & Guattari 1980: 445). Não é mais o caso de se opor a paz interna à guerra externa, o convivialismo dos semelhantes à exclusão dos diferentes: “A ausência de uma estabilização maior do poder político não resulta do consenso em torno de um desejo comum de liberdade, mas de um constante dissenso e da ausência da noção de ‘bem comum’” (Figueiredo 2011). O chefe sem poder é um chefe não representativo — pois estamos fora do mundo da representação. Falece toda leitura convivialista da sociedade-contra-o-Estado. Uma imagem de nós mesmos onde não nos reconhecemos. Sequer no ideal. [O Globo, 23/7/2011]
EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO é antropólogo, professor do Museu Nacional/UFRJ, autor de “A inconstância da alma selvagem”, entre outros. Este artigo reproduz trechos dos posfácio que integra a nova edição de “Arqueologia da violência” (Cosac Naify, tradução de Paulo Neves, prefácio de Bento Prado Jr.)