Benedito Nunes: Filosofia da Vida em Dilthey

Se a "filosofia da vida" é caudalosa e difusa, o termo "vida" é extensivo e ambíguo: sujeito e objeto ao mesmo tempo, tal como empregado por Dilthey, é acolhido por Heidegger em seu Interpretações Fenomenológicas de Aristóteles, de 1922, um escrito dirigido a Paul Natorp, em Marbourg, e que constitui o primeiro esboço da Analítica do Dasein. Neste ponto, Heidegger trata da vida fática [dem faktischen Leben] e dá a explicitação de sua mobilidade fundamental como fim da pesquisa filosófica, que tem por objeto o Dasein humano [menschliches Dasein], interrogando-o do ponto de vista do seu ser. "A polissemia do termo vida, e seu uso equívoco, não deve servir de pretexto para rejeitá-lo simplesmente", escreve Heidegger.

Encontramos depois em Ser e Tempo duas referências a Dilthey, cuja obra se esgalhou em dois ramos principais: o epistemológico, das ciências do espírito [Geisteswissenschaften], e o histórico, relativo às visões do mundo [Weltanschauungen], a partir de uma concepção da experiência da vida, enquanto conexão de vivências [Erlebnissen]. Heidegger se refere, em Ser e Tempo, a esses dois tópicos. A conexão de vivências, como mostra a própria expressão "experiência da vida", em Dilthey, é de caráter psicológico. Baseia-se na estrutura psíquica do ser humano, assentando nas três funções anímicas - afetividade, inteligência e vontade - que condicionam a nossa relação com o mundo, imprimindo direção ao conhecimento teórico e à atividade prática.

Cabe, neste momento, voltarmos à expressão de Schlegel: "a filosofia sempre começa no meio, como a poesia épica". Para Dilthey, o in media res é a experiência da vida; desse modo, a filosofia depende das conexões psíquicas do ser humano, pois que são essas conexões que regem as suas relações com o mundo. Realçava, portanto, a "filosofia da vida" o elemento pré-teórico do pensamento. Sabemos que Dilthey procurou, na vertente epistemológica de sua obra, determinar uma razão histórica, por oposição à razão predominante nas ciências da natureza. Desse ponto de vista, estabeleceu a distinção, que continua a ser discutida, entre a explicação (nas Ciências da natureza) e a compreensão (nas Ciências do espírito). Como as Ciências do espírito, que culminam na História e têm por base a Psicologia, abrangem setores de uma só realidade histórica (Moral, Direito, Arte etc.), o problema com o qual se defronta Dilthey é a possibilidade do conhecimento histórico, ou de uma razão histórica. Mas que conhecimento histórico é esse que decorre de um lastro psíquico, baseado em funções vitais, anímicas, que são um derivativo da teoria das faculdades da alma?

Vamos resumir o ponto de vista de Dilthey. As ciências da natureza investigam fatos; suas conclusões são hipotéticas, mediante o estabelecimento de leis. Explicam os fenômenos subsumindo-os a leis, remontando a uma determinação geral, a uma legalidade, o que dá resposta a uma situação externa. Nas Ciências do espírito, os fenômenos são internos, a realidade apresentando-se como uma conexão viva, originariamente dada, primária, segundo o próprio Dilthey, ao tratar da "Psicologia descritiva". Uma conexão primária é aquela que não pode ser reduzida a um conceito, mas que é determinativa para a elaboração dos próprios conceitos. Por isso, a natureza é explicada, e a vida anímica, prolongando-se na história, é compreendida. O que é a vida anímica? É a vida dos sujeitos psicofísicos, individuais, que têm as suas determinações, as suas categorias próprias.

A primeira determinação categorial é a temporalidade, que implica a relação do presente com o passado e de ambos com o futuro. Mas a "filosofia da vida" não privilegiaria o futuro, como de certa forma Heidegger o fez na concepção da temporalidade. A "filosofia da vida" privilegiou o nexo do presente com o passado. Essa relação do presente com o passado constitui o curso de vida. Escreve Dilthey:
O viver é um transcurso no tempo, em que cada estado, antes de converter-se em objeto distinto, já está mudando, pois que o momento seguinte se constrói sobre o anterior e, nesse transcurso, cada momento, entretanto não captado, se transforma em passado.
Não se pode, entretanto, sair com facilidade do âmbito psicológico, porque o curso de vida se compõe de vivências, sempre referidas ao Eu. Se falamos em vivências, falamos do modo de viver algo, o que significa subjetivizar aquilo que acontece. Vivência é sempre vivência de alguém. Entretanto, as vivências se ordenam, têm conexão entre si; e Dilthey aponta essa conexão como outra das categorias da vida. Suporte das duas categorias, a temporalidade e a conexão, a vivência equivale à vida; mas a vida não é uma entidade biológica, e sim a vida de alguém, a vida do objeto no sujeito e para o sujeito. Na "filosofia da vida" de cunho biológico, como a de Bergson, sobressai o conceito de evolução progressiva, criadora, que denomina um dos mais conhecidos escritos desse filósofo. A vivência é a unidade do que é psíquico, a vivência da própria vida [Erleben des eignen Lebens], que Dilthey, sem fugir à tautologia, trata a título de compreensão originária, de forma originária do compreender. Esta se alarga, porém, com a compreensão da vida de outrem, da vida estranha a mim. Mas, nesse plano, a vida estranha a mim é a vida histórica; e dada a importância do passado, na categoria da temporalidade em Dilthey, eu só posso recuperar a vida histórica por intermédio de uma empatia [Einfühlung], sentindo-a como aquilo que me é estranho. Queremos mostrar que a compreensão é coesiva da vivência e da reflexão que a transvive pela memória. Mas, segundo adverte Dilthey, em diversos textos, a compreensão não é a compreensão da vida, a decifração do que ela é em si; se a compreendemos é porque nela já estamos, como no palco onde o pensamento vai se desenvolver. O que compreendemos, portanto, não é a vida em si, que permanece um enigma; compreendemos os significados em que a vida se traduz ou se exprime, ou seja, as categorias da vida. Se falamos de expressão, falamos também de valor. A expressão varia conforme os valores e os fins que são visados pelo homem.

Mas não podemos omitir o prolongamento da vida que subsidia essa compreensão: a ação recíproca das unidades psicofísicas, isto é, dos indivíduos, de que nasce a realidade sócio-histórica. Sob esse aspecto Dilthey tem uma vinculação muito forte com Hegel, já denunciada pelo próprio elo das "Ciências do Espírito" com a tradição hegeliana. Justamente a expressão dessa realidade sócio-histórica está nos produtos da cultura. Como o essencial é psíquico, portanto subjetivo, a realidade sócio-histórica, que provém da ação recíproca dos indivíduos, objetifica o psíquico nos produtos da cultura. Na terminologia hegeliana, seriam estes objetificações do espírito. E uma das principais objetificações do espírito é o produto cultural que chamamos de escrita. Se é assim, também, do ponto de vista da expressão, firma-se uma das categorias principais da vida: o significado. Não há nada que o homem possa viver quer individual, quer culturalmente, que seja destituído de significado. Dilthey chega mesmo a afirmar que "o significado é a categoria mais ampla com que abarcamos a vida".

Heidegger, porém, diga-se de passagem, vai desvincular a apropriação filosófica do significado da atividade do espírito. Em Ser e Tempo, a significatividade, ou a "significância", surge do próprio comportamento humano na sua prática cotidiana. Isso nos mostra antecipadamente, também, o lado "pragmático", que não pode deixar de ser considerado da filosofia heideggeriana, já entrevisto na aproximação do filósofo com Aristóteles, não só através da Metafísica, como também da Ética a Nicômaco. Quem fala deste último, fala da sophrosine, que é a virtude prática por excelência.

Fonte: Speculum

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